Folha de S. Paulo


A mais bela cor que se pode ter

Falar sobre negros nos blogs e no Facebook não é fácil. De quando em quando um texto longo, tudo bem. O "Face" é mais visual, comporta menos frases compridas e reflexões. Vamos ter que parar e usar só a bibliografia. Só não, o mais importante é ela, permitindo que se ande sozinho pelas vielas do conhecimento.

Quer ver o que cabe num blog, nos faz lembrar e balança nossos sentimentos? Coisas de infância, lembranças da babá cheias de banhos e sabonete cheiroso.

No Brasil, principalmente em São Paulo, só conheci negros que trabalhavam para nós e, ao contar isso, recebi muita correspondência de ódio, ganhando da minha vontade, da minha pequena força. Não podia falar nem a palavra "empregado", era a hora de reivindicar seus direitos, e de que falava eu? Empregados não existiam mais, era um a profissão extinta.

Principalmente nos últimos anos, em que julgaram que ser empregado era ser servil e maltratado.

Sempre defendi o serviço de cozinhar ou limpar uma casa como sendo o mais precioso de todos e merecedor de bons salários e de especialização. Era verdade que estava em extinção, e por isso mesmo quem se aferrasse a ele, quem tivesse o dom e o gosto, quem soubesse trabalhar bem, seria altamente recompensado por isso.

Todo o mundo sabe o ordenado de uma boa cozinheira e como é procurada como agulha no palheiro. A insistência dos que defendiam que a classe deveria acabar é que o trabalho doméstico em casa alheia deveria terminar. Concordo, quando esse serviço corta a possibilidade da empregada ou empregado terem suas próprias vidas. O que se pedia a eles, na imprensa, era que fossem exercer uma profissão da qual não tinham noção e deixassem para trás seus dotes, seus aprendizados.

Sempre lutei por alfabetização imediata. Mal chegavam em casa, já eram agarrados para aprender a ler –e na vida de minha mãe não dá para contar nos dedos as meninas a quem ensinou a ler. E meninos também, quantos encaminhamos para o Senai.

Não era fácil. Recuperar crianças que eram deixadas em casa pelas mães e que, quando vinham até nós, pareciam chegar de Biafra. A dificuldade de chegar ao emprego morando longe demais, dentro de uma cidade que não os contemplou no planejamento de seu urbanismo.

E me lembro de todos como indivíduos especiais, mostrando que o que se chama racismo não existe aos olhos de uma criança. Nossa experiência maior foi com uma família de dez irmãs que antes moravam em Bebedouro e que haviam trabalhado lá com pessoas que as tratavam tão bem como mereciam. Eram mulheres bonitas, lembro-me de passar anos enroscada nelas, amando os seus cabelos alisados, aprendendo a alisá-los, intrigada por terem que fazê-los lisos, quando eram tão bonitos, enroscadinhos como uma mola.

Lembro quase chorando de Iracema, a virgem dos lábios de mel, mulata muito clara, que cantava como uma sereia. Cuidávamos de umas verrugas que lhe apareciam nas mãos com todas as mandingas possíveis e um dia vimos caírem todas com um xarope de jurubeba.

Aprendia a ler rapidamente, tinha pés enormes por ser alta, o que nos obrigava a incursões à cidade, à procura de sapatos bonitos, de sair. Era doce como um doce de batata-doce.

Um dia se apaixonou pelo Zé e ia tudo muito bem até que ele sumiu. Iracema chorava pelos cantos, esqueceu de cantar, e minha mãe não aguentou. Foi atrás do culpado. Ele, baixinho, se desculpou, vítima de bullying dos amigos que achavam que os dois não ornavam por seus tamanhos diferentes. O problema foi resolvido, o amor resolvia tudo, tiveram muitos filhos e foram felizes até que a morte os separasse.

Irene, mais escura, um tipo de beleza. A mais inteligente de todas. Acabou numa casa rica, pajeou duas crianças, e quando cresceram foi trabalhar no escritório de meu pai por alguns anos. Eficiente, sempre deixou todo o mundo para trás, boa no tricô, nos picles, nas histórias lidas em voz alta para a criançada, virou chauffeuse, e o que mais se precisasse dela.

E houve as que não tinham mesmo jeito, Braulina, (não era da família) muito feia, uma linguagem embrulhada, aprendia a primeira lição com louvor e entrava na segunda. Na segunda se esquecia da primeira, e assim por diante. Não gostava das letras e se desculpava por lhe ter caído um pote na cabeça quando era pequena. O que não impedia que vivêssemos enroscados nela, abraçando, beijando na boca. Criança não tem noção do que é a cor alheia, meus filhos achavam um terror que chamassem de preta a moça que os criou, era marrom, a mais bela cor que uma pessoa podia ter.

Estou com essa conversinha de cores e de amores porque descobri, com tristeza, que os blogs e o Facebook não são lugares para se estudar um assunto como a negritude. Do jeito que queríamos, ou talvez seja por inépcia minha. Mesmo que se toque no assunto todos os dias, perde-se a fluência. Estávamos lidando com a negritude, primeiro na África e Estados Unidos, vimos em bibliografia farta como foram eles a usar e ensinar o plantio de arroz brasileiro e em outros sítios da diáspora negra. Para aliviar o peso do assunto começamos a ter receitas de arroz, que todo o mundo aprecia uma receita, mas os leitores variam, o "Face" rola, perdem-se as bibliografias, etc e tal.

O ideal é que seja visual e em gotas. É bom, também, aprender assim, uma coisa nova no mundo, coisa que somos os primeiros a usar. Mas é preciso saber lidar com ela. Indicar um livro, colocar um poema, cutucar os assuntos, e deixar que cada um de nós procure o seu caminho de sabedoria. Às vezes não são os textos longos que ensinam, mas a cutucada unida ao visual, que pode nos deixar pensando e nos empurre com força para o assunto em foco.

Esperem as cutucadas, prometo que podem doer.


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