Folha de S. Paulo


Sobre os negros

Ficamos combinados de pensar sobre a negritude, o que não é fácil. De tão óbvio é difícil. E para o negro, então, o que é complicado sentir na pele os problemas do racismo. Tentei estudar a história dos escravos, mas sem orientação vamos nos perdendo nos meandros de tanto assunto. Tanta pesquisa, tanta coisa a se saber, tantos lugares diferentes com diferentes influências, África, Caribe, as Américas, os Estados Unidos, muitas histórias, muitas versões.

Antes de olhar as pesquisas seria bom ler alguma coisa sobre a cor da pele. (A cada vez vou indicar dois livros ou mais, um para se ler como um romance, outros como pesquisa com um linguajar não muito acadêmico, ou, melhor ainda, nada acadêmico, sobre os escravos negros.)

Sem contar que presumimos a leitura de Gilberto Freyre, por exemplo, e quem sabe, na infância, "Tom Sawyer" e "Huckleberry Finn" e "A cabana do Pai Tomás". Por enquanto deixamos Faulkner de lado, é mais difícil, pode nos desanimar. E Flannery O'Connor é maravilhosa, nunca li nada traduzido dela, mas mesmo em tradução deve ter graça e profundidade. Vamos deixá-la para o fim. E quem souber de bons livros sobre o assunto é favor contribuir nos dando o nome deles.

O último livro que li foi "Between the World and Me" de Ta-Nehisi Coates, traduzido como "Entre o Mundo e Eu". Um pai explica a um filho (negros americanos) o que vai por baixo da cor da pele. Um grande medo da morte.

O autor acha que os americanos se esqueceram da saga da escravidão, são os sonhadores lutando por uma casa com garagem, um gramado e sucesso na vida, enquanto o negro tem medo de perder a vida, de morrer na rua, de morrer assassinado, sem motivo. O que tem que aprender primeiro é como se comportar para evitar a morte, nas ruas, na faculdade, socialmente, pois sempre está por baixo a vulnerabilidade do seu corpo, a facilidade com que se mata um negro americano, desarmado na rua.

Toda a vida de um negro está dirigida para esse medo, impossibilitando-o de muitas coisas que os brancos podem ter e fazer sem medo.

É um livro pequeno, um ensaio, bem escrito, e extremamente adequado para o nosso tempo.

Outro que vale a pena ler, principalmente para quem se interessa por alimentação, é "Black Rice", que não foi traduzido. Gosto dessa nova safra de livros que nos mostram um lado da escravidão pouco mencionado, pelo menos para mim, que é a do legado africano deixado para nós, dentro da alimentação, não o legado de sementes, mas um sistema de conhecimento sofisticado que ia do plantio ao processamento. Nunca pensamos no escravo nos ensinando a plantar, bem o contrário, e há uma leva de pesquisadores estudando justamente isso.

No caso do arroz, por exemplo, é claro que as gentes e as plantas migraram juntos. Entre os milhões de negros escravizados e forçados ao trabalho nas Américas, sabemos que o arroz era comida básica deles. Nenhuma refeição estaria completa sem o arroz. O cereal mostra toda a sua importância nas tradições culturais negras e até o bate-bate do pilão nas manhãs africanas relembra as tradições culturais e o começo de um novo dia.

Não é fácil plantar o arroz. Na Carolina do Sul e no leste da Amazônia os plantadores aprenderam com os africanos. Todo o conhecimento dos africanos, conhecimentos que tinham na sua terra, não pode chegar aos lugares onde seriam escravizados, porque eles vinham de terras diferentes, e não trouxeram consigo sistemas, mas conhecimentos separados. E ainda havia a violência contra eles, o estrangulamento de suas vontades, do que sabiam e do que sentiam.

Mas, segundo Sidney Mintz (autor fácil de ler e muito interessante), a despeito de tudo os filhos desses escravos sobreviveram e com eles sobreviveu a África. Essas leituras, mesmo que dispersas podem nos ajudar a ver os negros com mais realidade e distinção, tirando da cabeça preconceitos arraigados e velhos.

Já me agrada saber que mais nos deram de cultura do que imaginamos e a cada colherada de arroz vou me lembrar deles e não dos portugueses, nem dos chineses, nem de nós mesmos. Era uma cultura complexa e foram os escravos que passaram seus conhecimentos para os colonizadores.

No Face, receita de arroz. Já não é um começo revermos a contribuição dos negros que vai bem além do que costumamos imaginar?


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