Folha de S. Paulo


Sábia e gulosa ao mesmo tempo

Não dá para acreditar, fiquei tão feliz na noite de autógrafos que cansei. Da noite propriamente não, poderia ter ficado o resto da vida assinando e vendo os amigos, emocionada. Conhecendo os do Facebook, reencontrando gente que não via há um tempão. Cansaço veio mesmo da ansiedade prévia, da certeza que ninguém enfrentaria a noite do Spot e eu ficaria lá, sentada no meio a mil livros inúteis.

Coisa de criança que faz anos nas férias e tem medo que não haja gente suficiente para vir comer o bolo. Obrigada aos amigos muito queridos que não me deixaram a ver navios.

E, depois, uma entrevista aqui e outra ali, e meu pavor de falar para muita gente quando sei que meu limite é uma pessoa, nada mais que uma. É um problema sério, uma afasia, esqueço as palavras, repito termos que jamais usei. Na TV Folha (assista aqui) repeti as palavras "pato e laranja", inúmeras vezes como se fossem os únicos ingredientes do mundo, e me fartei com a expressão "chiquérrimo", que imagino tenha sido a primeira vez que usei.

Prometi ler dois livros nesse fim de semana, o da Bela Gil (Bela Gil Cozinha) e o da Cristiana Couto (Alimentação no Brasil Colonial) Pois, acreditem, não consegui ler nenhum dos dois, só folheei. O da Cristiana até me deu medo por causa das tentações que vislumbrei, a bibliografia que ela cita. É rezar para não achar os livros que ela menciona, e falir em estado de graça.

Minhas resenhas se dirigem a cozinheiros e donas de casa e me sinto pouco preparada a lidar com conceitos acadêmicos, mas vamos lá. Aconselho os cozinheiros a se reunir em grupos e ler o livro frase por frase com discussões, até se sentirem totalmente por dentro do assunto e usando a palavra "epistemologia" como um acadêmico, assim, sem problema nenhum, logo ao se levantar de manhã, antes de escovar os dentes.

Não gosto muito da linguagem acadêmica para falar de comida, acho que a palavra "epistemologia" e as congêneres afastam muitos leitores-cozinheiros e preferia que Cristiana fosse cozinheira e que discorresse sobre comida sem usar o vocabulário árido, mas necessário da ciência.

No primeiro capítulo discorre sobre: antropologia, sociologia e história da comida. No segundo e no terceiro aborda as discussões nas teses a partir de 1832 relacionadas à medicina e à nutrição.

No quarto capítulo discute-se o gosto, a gastronomia e a ciência na França do século 19. O quinto capítulo desvenda heranças culinárias europeias e questões químico-dietéticas.

É uma tese muito pesquisada e cuidadosa a ser estudada e não lida pulando páginas. Interessante ler pesquisas paralelas que ela indica. Eu vou ler assim: a cada cinco livros que ela indica, leio um. Os que mais me tentam são o Norbert Elias e o Braudel.

Enquanto não acabo o livro, indico a vocês a crítica que fez do livro dela o Carlos Alberto Dória, muito boa. A maioria da bibliografia é estrangeira até chegar nos nossos Câmara Cascudo, Gilberto Freire e Eduardo Frieiro. Afinal começamos nossas leituras em livros tão interessantes e completos quando muitos lugares não os possuem até hoje.

Fazendo um parênteses, o livro da cozinheira que se apresenta na TV, Bela Gil, trata de receitas, e devido a seus dez anos de estudo nos EUA, nota-se a sua preocupação em dar explicações e porquês que eu pulo, pois rapidamente explicam suas relações com a dietética e a química. Acho louvável, mas tento não ler nem ouvir essas digressões. Bela cozinha tão bem e com tanta naturalidade, fazendo uso dos seus sentidos, cheirando uma comida boa, mastigando um coentro do mato, amassando um inhame para um sorvete, que penso ser inútil decorar as serventias para a saúde, se vou comer um pouquinho de cada um deles, sem exagerar em nenhum.

A comida dela é extremamente saborosa e ultimamente tenho a tentação de classificá-la como uma das melhores cozinheiras brasileiras pela naturalidade com que encara os ingredientes mais brasileiros que temos. E o engraçado é que são esses ingredientes que soam estranhos para grande parte do telespectadores. E quais são eles? Banana, batata-doce, cará, inhame, palmito, feijões variados, frutas que comeu no pé quando criança.

Devido à sua formação introduz vários grãos usados em outras terras, ingredientes do Mediterrâneo trazendo a impressão de "natureba", como muitos a apelidam, mas tendo um leque enorme de escolhas e misturas muito saborosas, produtos da formação numa bela escola que a ensinou também a flexibilidade e o total desapego a uma cozinha sempre igual. Clássica, de qualquer raiz. Compromete-se com o saudável, tudo muito fresco, mas principalmente com o saboroso.

Intriguei-me muito como caçoam dela e seus inhames e feijões fradinhos e bananas e mandiocas. De repente me deu uma luz. Ninguém entende desses tubérculos, ninguém compra, são coisas pobres de plantio de subsistência e nós, de cidades mais cosmopolitas, nem conhecer, conhecemos. Digo "nós" para uma turma de foodies, um pequeno um por cento de foodies, pois o Brasil inteiro se alimenta disso e de bananas e de cocos e coquinhos. Espero que a ela não se importe, imagino que não, pois a outra turma de brasileiros que não é de foodies, forma filas e mais filas fazendo seu livro chegar na lista dos mais vendidos, deixando na rabada os livros mais intelectualizados.

Enquanto Cristiana Couto faz uma pesquisa sobre saúde e doença na capital do Império, o clima e o homem e as emanações miasmáticas, Bela colhe cenouras e cebolas na horta, come acarajé com a boca boa, equilibra as cores no prato, mastiga muito com seus dentes grandes de Gilberto Gil.

Enquanto Cristiana pesquisa sobre febres intermitentes e alimentação como prevenção, a Bela vai comendo berinjela com gergelim, e melancia morna. Parece que tudo de bom sobrou para Bela, mas se não fossem as pesquisas de Cristiana sobre a elefantíase dos gregos e a carne de porco, talvez Bela não pudesse fazer costelinhas, hoje em dia, pois as faz sem problema, contanto que não se exagere na dose.

E Cristiana, num estudo minucioso, pesquisa as relações do gosto e da gastronomia com a ciência, o gosto francês, Brillat Savarin. O livro de Cristiana torna-se mais interessante a cada minuto, enquanto Bela gosta de quase tudo ou tudo, sabe cozinhar muito bem, nada que sai de sua panela é ruim, pois experimenta, cozinha de verdade, tem fome, convida todos à sua mesa, bebe um vinho com alegria, faz sucos estranhos que surpreendem a boca, pois são frescos e saborosos e não seguem as regras dos nossos sucos conhecidos.

De onde terão vindo as receitas mais quadradas que Bela faz? Cristiana sai a cata da ciência e da gastronomia em textos culinários europeus do século 19. Lê os textos portugueses e as heranças culinárias europeias e científicas nos receituários brasileiros e portugueses. É um livro difícil de escrever.

Enquanto Cristiana pesquisa a cuisine bourgeoise, percebe que aparece um interesse especial pelo gosto na França. Tanto se fala em química em Portugal que o assunto vai se infiltrando no Brasil. Ácido péctico, açúcares, doces, café, está tudo nos racontos de Cristiana, nossa acadêmica, nossa pesquisadora de truz. Os médicos adoram que o povo esteja abandonando a feijoada, Bela mistura legumes e imita feijoadas homéricas, sabe que é um gosto que os brasileiros adoram, vamos devagar com a louça, mas vamos.

Cristiana desenrola os fios emaranhados de uma história, antropologia e sociologia da cozinha científica. Bela pega os fios já divididos, estudados e cortados e mistura banana com gergelim e chocolate, muito sabida que aquilo faz bem, pois não foi o que Cristiana acabou de pesquisar?

Com o passar dos anos, está quase tudo compreendido, resta comer de um modo gostoso.

As duas se complementam. Uma desfaz os nós, outra os come já desatados, feliz da vida. São dois livros que deveríamos ter na cabeceira. Na cabeceira vou manter o da Cristiana Couto e ler um capítulo por dia, com paciência e prazer. O da Bela vou deixar na cozinha e comer de tudo, com boca muito boa e até emagrecer.

E quando não entender o que Cristiana quer dizer com alimentos azotados ou não azotados vou ao Google, entendo e faço uma comidinha pra lá de boa com a receita da Bela, mas sabendo o porquê de estar comendo aquilo, sábia e gulosa ao mesmo tempo.


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