Folha de S. Paulo


Deixemos os foodies em paz

Meninas e meninos, quarta-feira passada contei de todos os jabás que estão acontecendo comigo, eu que passei uma vida inteira de honestidade, pagando restaurante, pagando tudo que fosse cobrável. Todo esse pagamento rendeu, pois agora ganho presentes de todos os lados e faço questão de contar aqui, acho que assim diminui o jabaculê. É que não vejo como devolver um potinho de geleia, uma trouxinha de cereais para o café da manhã.

Numa segunda feira o Luiz Horta e o Dênis avisaram que vinham jantar aqui. Estranhei um pouco, mas quando chegaram traziam junto Beth Viveiros, dona da Beth Bakery, com uma amostra de cada pão que faz. Que sabiamente comemos quase todos com queijo e embutidos. Ela veio com o marido, quietão, mas que se mostrou inteiro quando o assunto caiu em comidas baianas. Ele faz a parte comercial da padaria e me prometeu um óleo de dendê jamais visto. Estou esperando.

Mas, hoje, o assunto é outro. Tenho notado que a palavra foodie vem cobrando um sentido pejorativo, como se foodies fossem os gourmetizadores com seus raios ferozes. Não façam isso, essa é uma palavrinha difícil de traduzir e difícil de ser substituída, ninguém conseguiu até hoje arranjar outra, então devagar com a louça, é preciso primeiro descobrir uma expressão nova e depois jogar fora essa.

Foodie é uma palavra de longo espectro. Designa desde aquele boia-fria que só come o arroz que a mulher faz e sabe de que safra é o arroz que está comendo. A menina que vai para o escritório com almoço de três frutas, mas que frutas! Escolhe melhor do que um chef, sabe as épocas e o melhor lugar de encontrá-las. Enfim, é alguém que gosta de comida e se dá ao trabalho de defender sua boia de todo dia.

Há críticos aos montes, atualmente. Cada um com seu gosto muito pessoal, todos foodies. Alguns se especializam em comida de ogro, como chamam, e saem à procura de pequenas casas chinesas na Liberdade, onde se pode comer com a família que almoça junto ao cliente, na mesa. Restaurantes de comida italiana com três mesas servidas pelo dono e cozinheiro, sem direito a escolha. Ele é que manda. Um colombiano que surgiu há três dias e que ninguém imagina o que ele consegue fazer numa garagem que alugou agora.

São foodies, também, por que não? Os que fazem a comida e os que vão lá comer. Às vezes são pioneiros que fazem a fama de um lugar que mal se mantinha em pé ao começar.

E há aqueles que vão atrás de grandes cozinheiros, pesquisam os preços que são sempre altos, comparam o nível de sofisticação de um restaurante para o outro. Foodies comem de tudo, sempre abertos ao novo.

O que acontece é que existem chatos entre nós, todos nós, muitos chatos. Por que não existiriam chatos entre os foodies? Claro que existem. Mas passemos por cima da chatice e tentemos segurar a palavra foodie, que traduz perfeitamente aqueles que gostam de comida, falam de comida, pensam em comida, sabem o que querem, vão atrás, cada um com sua mania, daí existir o chato do vinho, o chato do azeite, o chato das batatas fritas. O que fazer com eles? Nada, é óbvio, são os foodies chatos, só isso.

O que essa gente com mania de comida talvez faça, mesmo sem querer, é anunciar a diversidade tão desejada, através deles talvez seja possível escapar da monocultura do costume. Através deles descobrimos o valor do café da nossa padaria, dos pastéis da nossa feira, do hambúrguer daquele mercadinho tão próximo a nós, da bala de ovo perfeita que a dona Miquelina entrega em casa.

É ainda é um meio de aceitar os imigrantes que chegam aqui, conhecendo-os com prazer, através da comida.

E já pensaram se não houvesse alguém para experimentar primeiro do que nós todas as orelhas de porco, todo peixe horrendo, toda língua ensopada e carne de bode de panela?

Deixemos os foodies sossegados, eles não são os culpados, culpados são aqueles que fingem gostar de comida para seguir as modinhas que aparecem. Xô com esses, os foodies ficam.


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