Folha de S. Paulo


Um cheiro de torresmo no ar

Realmente o hábito de escrever cartas morreu depressa. Custei a perceber até que uma amiga me disse que aquilo era de outro século, que ela se lembrava de Freud quando via uma carta.

Acho que ninguém em sã consciência poderá recomeçar a escrevê-las, levá-las ao correio, colar o selo, esperar sete dias ou mais pela resposta tendo a possibilidade de mandar um e-mail.

Literariamente, o que se perde? Não sei ainda. Talvez se ganhe em objetividade, e as respostas não sejam tão pensadas, saem do instante, são menos reflexivas, mais perigosas, podem dizer o que não diriam. O que as tornaria mais autênticas, espontâneas?

E para a história? Tantas coleções de cartas ajudaram a rever guerras e política e amores, e evolução de ideias, o que acontecerá com e-mails? Salmon Rushdie vendeu seu computador com tudo que tinha dentro, nem pensou duas vezes. Mas quem tem uma vida organizada dentro de um computador só e nem passou pela tentação de deletar tudo?

Por essas e por outras peço licença para escrever a vocês uma carta antiga, uma carta intrigada.

Leitores, faz um tempão que não nos escrevemos. Não foi falta de tempo, nem de papel, nem de tinta. Juro, vocês não acreditam. Foi excesso de assunto.

De repente comida que era um coisa vital mas pouco mencionada em jornais, revistas e livros, enlouqueceu. Passou a ser o assunto do dia, a coisa mais comentada do universo, o quintal de todo mundo, a vedete da mídia, a menina dos olhos dos homens, a cúmplice das mulheres, a musa do cinema e da TV. Não sei como foi no rádio, acho que não fez tanto sucesso assim.

Mas, sabe-se lá.

Onde existe uma foto, onde pode ser vista ou lida, está lá. Ninguém sabe quem começou a onda, muitas investigações são feitas, o tempo todo. Terá sido Babette depois do seu jantar famoso? Ferran Adrià, o inovador catalão? Passaram todos por tribunais à procura do culpado, sociólogos e antropólogos e pesquisadores perdem o sono atrás do mistério. E ao se dar conta que o assunto poderia render teses inflamadas se puseram a falar sobre ela, a lhe descobrir segredos nunca dantes imaginados. Uma camponesa se transformou em Cinderela.

Comemos, ainda? Não se pode dizer que não, mas é sempre com outras intenções. Lembram-se dos fieis garfo e faca? Pois não são os primeiros a tocar uma comida no prato. Primeiro vem a máquina, o celular, a foto. Quem não aderiu à moda da foto, critica com os olhos, nota a proporção, observa as cores, a simetria, a combinação e pode ter a noite estragada por causa de uma salsinha a mais. Não satisfeitos correm para o computador e contam histórias sobre o ovo, o branco arroz, aquele feijão antigo de todo dia. Histórias que às vezes brigam entre si, mas não importa, o assunto foi mencionado, não se pode dormir com a consciência em paz se não se toca no problema do arroz do risoto.

A profissão de cozinheiro que não levava muita fé, agigantou-se, um avantesma. Mudaram o nome para chefs, alguns, e o mister antes humilde, cobrou uma dignidade antes insuspeitada.

Soube que a rainha Elizabeth do alto de sua coroa quase centenária tem que se sentar à escrivaninha para transcrever receitas de fish and chips pedidas por dignatários que a visitam.

Os que escreviam sobre ela nos jornais nem dormem mais pois há centenas de candidatos ao lugar, frementes, ávidos, já nasceram tomando nota das receitas das fórmulas de suas mamadeiras e continuaram vida afora cortando cebolas, inscrevendo-se em cursos e concursos. Descobriram a nova ciência, a mágica, a vocação que escapara à geração anterior e se esfalfam no élan de inventar, de misturar, de correr a falar em ingredientes pois há muitos em extinção. Digo, muitos espécimes em extinção, misturando-se a eles os próprios jornais onde querem documentar o frenesi do cru e do cozido.

Não há quem não se preocupe com o novo assunto, parece que todas as batatas do mundo já foram descascadas, todas as ervas plantadas nos telhados e vãos, todas as terras remexidas, os bichos catalogados, o mundo só vai ser salvo se soubermos plantar para comer. As crianças das
escolas pouco tempo têm para o aprendizado das letras, agora cultivam cenouras orgânicas, colhem rabanetes e brotos de alfafa.

Há exércitos ferozes diante dos dizimadores de galinhas, e lutam também as lutas dos patos e dos porcos. Há um cheiro de torresmo no ar, não se sabe de onde vem, é preciso descobrir quais os métodos usados para fazê-lo, se o porco viajou até o fogão, se foi morto segundo os novos rituais de doçura desse novo mundo cheio de paz.

Meninos e meninas que leem essa carta antiga, talvez o exagero do tema repetido à insanidade faça passar essa onda, esse tsunami, esse "MasterChef" dos realities. O mundo se transformou num grande ovo fértil que explode em novas receitas de segundo a segundo e é por estar um pouco enfarada o da repetição monocórdica dos melhores cafés, chocolates e cervejas que deixei de vos escrever ultimamente. Peço desculpas e mal posso esperar levar a carta ao correio muito esperançosa que essa missiva chegue até vocês e que todos nós possamos de novo, um dia, tomar nosso café da manhã, almoçar, e jantar em paz de espírito.


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