Folha de S. Paulo


Mesas de um ou de outro

O meu pastor frequenta o candomblé e come acarajé sem dendê.

Bem, já faz algum tempo, era quando só existia o jornal de papel, um rapaz brasileiro que estudava teologia em Chicago, o Claudio Carvalhaes me escreveu. Era um estudante engraçado, inteligente, que me fez a mais absurda das perguntas. Queria saber como cozinhar espigas de milho pois queimava todas. Pela pergunta vê-se que não tinha a menor noção de cozinha, pois depois das respostas continuou queimando o milho. Só poderia ser distração das boas, ficava escrevendo ou lendo e qualquer e todo conselho só acarretaria a panela preta e o jantar estragado.

A família dele é de São Paulo e em uma das visitas veio aqui me ver. Toda vez que um leitor vem me ver quase me mato de angústia, imagino sua decepção, a falta de assunto que vai me agarrar pela goela, mas no fim dá certo e tenho o Claudio Carvalhaes até hoje como amigo querido. É de uma atividade espantosa, canso só de ver seu pique. Era espantosamente comunicativo, remexeu a casa inteira à cata de livros que pudessem interessar a ele, e voltou para os EUA.

Vive pelas internets da vida, clamando pelas injustiças do mundo, e não deixa escapar uma!

De vez em quando me pergunto se aquelas espigas queimadas não seriam uma desculpa para conversar com alguém que entendesse de comida, pois já se preparava para um dos seus principais temas de pesquisa que é a comida usada como objeto que aproxima as pessoas e ajuda a evitar a intolerância religiosa.

No outro dia fez um artigo sobre duas religiões brasileiras, o cristianismo (reformado) e o candomblé afro-brasileiro. Não vou repetir as palavras dele, mas contar do meu jeito o que já me contou, sempre com medo de errar um pouco e da memória falhar, mas fica mais fácil para entendermos, com palavras de todo dia. Ele é claro como água, mas tem escrito sempre em inglês. (Me lembro do geral, esqueço o nome de colégios em que estudou, épocas, datas, mas vamos lá, se um dia alguém precisar delas basta me pedir ou entrar no Google.)

Claudio era um menino paulista como outro qualquer, com casa, pai, mãe, irmãos e escola. Cresceu com a sua religião cristã (que tinha um inimigo, como que usando esse inimigo para se sustentar melhor). Era o candomblé. Os católicos não sentem tanto isso, mas os protestantes, sim. E o candomblé era uma coisa proibida, não se devia nem passar pela porta de um terreiro, vá que o Demônio estivesse espreitando! Se a bola de futebol caísse por perto era melhor não ir pegar que o Diabo era capaz de pegar primeiro.

O candomblé, diferentemente de outras religiões que conhecemos, não tem textos sagrados para estudarmos eles. Ele não podia ler nada sobre ela, e nem queria, para dizer a verdade.

Foi estudar teologia e a cabeça mudando a cada dia. Além de tentar não queimar o milho do jantar, foi vendo que os que praticavam outra religião eram seres comuns, iguaizinhos a ele, qualquer outro de qualquer religião.

O candomblé tinha suas tradições bem fundamentadas sobre comida e dança, duas coisas que viviam na cabeça do Claudio, cheia dos estudos teológicos. Mas, havia um ponto fixo que teimava em permanecer lá como aquelas musiquinhas que gravam e não somem tão cedo, ficam batucando no cérebro. Que era essa história da comida como agente aproximador.

O nosso Claudio achava que as religiões deveriam manter seus eixos, mas entendendo, respeitando as outras. Era o único jeito do mundo ter paz e se entender. Como evitar guerras e injustiças sem diálogo trabalhado e aprofundado todo tempo?

E ele, brasileiro, nunca tinha se aprofundado no candomblé. Também era difícil, era uma religião adaptada de uma terra a outra, sujeita ao racismo, e não tinha nada escrito, como uma Bíblia, eram todos ensinamentos boca a boca, passados oralmente.

Ele era gamado pela eucaristia e pelo Corpo e pela Hospitalidade e um dia percebeu que o candomblé também era. E todo atrevido como sempre foi, achou que para entender direito o que se passava num terreiro, tinha que entrar num, conviver com eles, participar dos rituais, e principalmente comer junto. Comer e rezar e dançar, afinal como era possível conhecer a alma sem o corpo? E a música. Tudo que faltava aos protestantes sobrava no candomblé. Como conseguir um espaço para conversar, trocar ideias sobre o mundo, falar sobre racismo, sobre a vida em geral, as alegrias, as desigualdades?

O Claudio achava que sentando juntos à mesa, de um ou de outro. A mesa eucarística dos dois.

E ali na mesa se quebra o tênue fio entre o espírito e o corpo. E há que conversar sobre as pessoas, o dinheiro que tem para viver, em quem votar e vai por aí.

Nós, brasileiros, sabemos como o Claudio saiu ganhando em matéria de comida. Todos sabemos a importância que o candomblé dá à comida, aos seus feijões e acaçás e bolinhos e mais isso e mais aquilo, e o cuidado e o fervor com que são preparados.

E ele se enfiou na vida deles, pois para compreender é preciso viver junto. Não só isso, o nosso pastor precisava se entregar também, oferecer os seu espaço, o seu modo de viver. Foi e o fez.

O que cresceu entre eles foi a alegria, a hospitalidade, o pertencimento. E posso imaginar o quanto o nosso pastor comeu, bebeu, dançou e se divertiu à grande. Já o terreiro deve ter estranhado um bocado a cara meio triste dos protestantes.

A religiosidade africana tem o poder de recriar seus mundos através das religiões que lhes estão mais à mão. Muito importante também é a aproximação que as religiões africanas têm com a terra e outra preocupação do Claudio Carvalhaes era a ecologia.

Para os protestantes as conversas devem ser também em torno da mesa, sob as vistas do Espírito Santo. No candomblé o espírito é o Axé, com suas roupas brancas, suas canções, suas energias. O Axé e o Espírito Santo podem se unir contra tanta coisa ruim e procurar a direção das coisas boas. Podemos nos tornar melhores através do outro, através da conversa do outro, sem perder nossas convicções sagradas, e nem uma nem outra religião precisa perder as suas.

Podemos, sim, é alargar nossa alteridade, nos tornarmos mais generosos e tolerantes.

É isso, o Santo Espírito e o Axé, recreando o mundo, fazendo, agindo. Para alcançar seus objetivos, que o Carvalhaes sabe que são difíceis e demorados, ele não para de pensar em comida. Diríamos que é um foodie religioso. Amante da grande mesa que nos aproxima.

Comer junto tem a ver com amor, comunidade, memórias repartidas. Nós somos o que comemos e, cristãos, dividimos o pão. Com a lembrança de Cristo. Os yorubás oferecem sacrifícios, o bode expiatório, uma corrente que mantém a vida unindo animais e nós. Para expandir nossa fé, tanto a dos cristãos como a dos orixás é só pensar na nossa cosmogonia. Em ambas religiões a comida celebra a criação de Deus, e sentimos fazer parte de um ecossistema maior e a vida é vivida no mundo, entre plantas e bichos e rios e mares. Uns agradam ao Cristo outros aos orixás.

No Brasil, tanto a eucaristia como os rituais de candomblé estão ligados a atos políticos. A eucaristia, aos mais poderosos, e as oferendas do candomblé como resistência aos mais poderosos, vinda do tempo da escravidão.

Claudio Carvalhaes acha que talvez o povo do candomblé saiba ensinar ao cristão como se engajar com mais força no banquete, na comensalidade, na comida sagrada.

E o que resultaria nessa mistura de rituais e de comidas?

Teríamos o cristianismo com a eucaristia, lembrando da penitência, do jejum, da privação. O candomblé cantando, comendo, celebrando, rindo, falando alto. São duas formas de movimento em torno do sagrado, duas formas que podem se beneficiar muito uma da outra.

Essa união parece fácil mas é um diálogo difícil. O que se pode aprender um do outro?

O protestante se enfia em cada questão cristã para criticá-la e avaliá-la, para não correr o risco de se tornar uma comunidade parada no tempo, idólatra, e continuar no caminho da reforma.

Mas, devagarzinho vai, o que é obrigatório é tentar.

Acredito piamente que o fazer é o mais importante quando se quer ser aceito pelo outro.

Numas férias da Bahia, queríamos muito conhecer Mãe Menininha e seu terreiro. Não era fácil. Depois de exercer toda a sedução possível conseguimos. O meu marido estava lá porque estávamos, sem perguntas existenciais nem críticas a fazer. Foi só ver Mãe Menininha e perceber que sua TV estava estragada e não funcionava para desgosto dela. Pô-se a consertar, mexer em fios e conseguiu o que parecia impossível.

Mãe Menininha passou a adorá-lo no mesmo instante. Ria para ele como a menininha que era. Depois de cumprido seu dever com ela foi remexer nos papeizinhos que os fiéis deixavam com pedidos. Leu todos. Mãe Menininha nem se importou. Bom, pudemos ver de tudo e mais um pouco, só porque alguém agiu normalmente, não intelectualizou nada, foi lá e deu jeito de Menininha assistir à novela.


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