Folha de S. Paulo


Um pouco dona

Vocês que me seguem há tempos sabem o amor que devoto à Casa Santa Luzia. Fui criada ao lado dela, desde pequena corria até lá sozinha para comprar um creme de leite batido na hora ou 453 g de presunto, tão dedicados eram os empregados às balanças.

Conhecia cada funcionário, cada corredor, e me sentia feliz sob a proteção de um dos donos no segundo andar. Um pouco dona, essa é a verdade.

Já me encaminhando para uma idade bem madura, abri o bufê. Consequentemente nunca mais fiz compras. Elas é que chegavam à porta, já bem escolhidas, fui perdendo o hábito de visitar supermercados, ainda fazia uma ou outra excursão ao Santa para conseguir um ingrediente diferente, um tomate mais vermelho. Fui escasseando as visitas, me fechando na bolha dos livros, dos ingredientes já prontos para as provas.

Vendi o bufê e eis que resolvo voltar à minha faina antiga. Compras.

De entrada, o trânsito não alivia em nada. Ao chegar lá, snobe nas citações, me senti como no último baile de Guermantes, quando Proust juntou todos os conhecidos. Via com espanto o frescor de alguém, só para reconhecer a neta da figura antiga. Meninos, eu conto.

Passei pela mesma experiência proustiana na Casa Santa Luzia. Não me vi com sete anos, mas me vi com quinze ainda estudante, já casada, cheia de alegria, de minissaia e calça boca de sino. E triste, procurando achar no colorido de uma lagosta um mínimo de alegria para levar a vida pra frente.

Mas os piores fantasmas eram os da mesma época, os de hoje. A velhice instalada, e a confiança perdida. Confiança em quê? Não era no Brasil nem da alta do dólar. Era um certo medo, medo de viver. O sorriso antes espontâneo agora pedia desculpas, desculpas por ter medo. Desculpas por não saber onde estava a carne que não era light, desculpas por nada, simplesmente por ter ultrapassado o tempo de viver com gana, com segurança, com passo firme, com mão boas para apertar o abacaxi sem deixá-lo cair, com equilíbrio para zoar entre os carrinhos sem empatar alguém.

Que idade enjoada, onde o Santa Luzia não era o mesmo, tinha uma névoa entre o produto e os olhos inseguros. Não estou dizendo que fôssemos caducos, lesados, não. Medo disso. Pura ansiedade, eu sei. Beijei dezenas de gente moça que não conheço, devem ser filhas das filhas das filhas das minhas companheiras de compra de creme de leite batido na hora. Não sei.

Tenho que confessar que o mal-estar foi se diluindo, já pisava com mais força no setor das goiabadas. O olhar clareou, a capacidade crítica aflorou diante da mulher que beijou a funcionária que informou a ela que era couve, sim, e cortada, e... especialmente...lavada. Antes de beijar a mocinha explicou. "Você entende, não é? O tempo que me pouparam. Sei que você entende, já deve ter passado por isso muitas vezes. É lavar, é cortar fininho, é cozinhar, nem acredito, vocês são bons demais.

Paguei com cheque. Nem o pessoal de "Sarto-Sartinho" paga mais com cheque. Alguém do passado, da seção de vinhos, me salvou.

Bom, passei por aquelas da minha idade, e cheguei ao futuro. Não era tão ameaçador, cadeiras de rodas, mas elétricas, e com mulheres bem mandonas dentro, dirigindo pelos corredores. Não sei se vou querer, não sei. Talvez passe a banana o resto da vida. Sem frescuras, fácil de descascar, de comer, banana, menina, tem vitamina, banana engorda e faz crescer, já dizia Proust.


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