Folha de S. Paulo


Quase um plágio

Veja o vídeo

Fui lendo com carinho "Los Secretos de El Bulli - Recetas, Técnicas e Reflexiones", mais reflexiones do que tudo. É um primeiro livrinho de Ferran Adrià, nem o vejo mais à venda. O homem quer pegar todos os clientes pelos sentidos, e quem não quer?

Bom, da última vez nos interrogamos sobre o caminho a tomar nesse imenso mundo da comida e suas modas. Comentamos Mário de Andrade e Macunaíma. E agora, como andamos?

O chique seria ser bem brasileiro e pronto, mas quem resiste a uma modinha? Estamos atentos à cultura do país e às mais novas tecnologias. Devemos ter bastante de químicos, prontos a elaborar novos conceitos embasados nos antigos, explicados pela ciência e cheios de graça e humor.

Para o bom efeito final todos devem estar afiados. O cliente deve sentir, o garçom tem que sentir, o chef tem que sentir, todos trocam energias, muita sensualidade, muita textura, veludos, terciopelos, gatos de porcelana, picantes gelatinas, árduas sopas, quentes sorvetes, gelados mingaus em dedais, pés de galinha em torresmo, mares de mel e rosas, flotantes espumas de caviar, minirrisotos de brotos, come-se assim, come-se assado, explicam os garçons.

Tocam sinos na minha cabeça, já ouvi isto, já vi, já escutei, já sei. Descobri. Já li tudo isso no infame manifesto da cozinha futurista de Marinetti, de 1909. Desvairados, os futuristas italianos afirmavam o quanto era importante a alimentação para a capacidade criativa, fecundadora e agressiva das raças. Muito doido o Marinetti e sua turma novidadeira, muito loucas suas comidas.

Que semelhança no delírio dos futuristas que agora se faz realidade, quem diria! Quase um plágio!

Vejam os conceitos deles. Harmonia dos cristais, louça e decoração com o alimento servido à mesa. O uso de perfumes para favorecer a degustação. A apresentação rápida de muitos pratos com pequenas porções que contivessem muitos sabores; a adoção de instrumentos científicos na cozinha-laboratório. Ozonizadores, lâmpadas ultravioletas, centrífugas para sucos, moinhos coloidais para fazer farinhas; indicadores químicos para corrigir eventuais erros... e muitas, muitas outras coincidências, como as das receitas semelhantes.

Receitas

"Uomodonnamezzanotte" (homemmulhermeianoite)
Despeja-se creme zabaglione vermelho sobre um prato, de modo a formar uma grande mancha. No meio dela, coloca-se uma rodela de cebola perfurada e atravessada por um talo de angélica confeitado. Como indica a ilustração, arranjam-se artisticamente duas castanhas confeitadas na parte de baixo do prato.

"Tuttoriso" (arroz branco fervido)
Uma parte, no meio do prato em formato de meia esfera. Outra parte, em torno da semiesfera, como coroa. Na hora de servir, despejar sobre a meia esfera um molho de vinho branco quente e fécula. E sobre a coroa, um molho de cerveja quente, gema de ovo e queijo parmesão.

Assim cozinhava Marinetti a sua insurreição e assim cozinhamos nós, agora. Deixamos Macunaíma para trás, ou melhor, usamos os ingredientes brasileiros e copiamos as técnicas contemporâneas.

Os cozinheiros estão atentos à cultura do país e às mais novas tecnologias. O bom efeito final depende de todos e de todos os sentidos. Tudo isso já escrito e desenhado no Manifesto de Cozinha Futurista de Marinetti, de 1909. O que prega é tão semelhante ao que fazem hoje nossos cozinheiros contemporâneos que dá para acreditar que o plagiamos.

Desvairados, os futuristas italianos afirmavam o quanto era importante a alimentação para a capacidade criativa, fecundadora e agressiva das raças. E as comidas que inventavam, para 1909, muito loucas! Sorvete de lua, caldo de rosas e sol. Chuva de fios açucarados; espuma excitante de Cinzano.

Deveria haver harmonia nos cristais, na louça e na decoração com o alimento servido à mesa. O uso de perfumes para favorecer a degustação. A apresentação muito rápida de muitos pratos com pequenas porções que contivessem muitos sabores; a adoção de instrumentos científicos na cozinha-laboratório. Ozonizadores, lâmpadas ultravioleta, centrífugas para sucos, moinhos coloidais para fazer farinhas. Indicadores químicos para corrigir eventuais erros.

Volto a me encantar com as caras emocionadas dos chefs da nouvelle cuisine (lembram-se?), juntos, estourando de orgulho da terra e de seus produtos. É nessa hora que penso que talvez não seja uma modinha o entusiasmo de todos, quase todos, a beleza dos pratos e tudo que ficou. Foi um trabalho de grupo, um horizonte que se abriu, uma construção feita por várias pessoas que se submeteram a um longo período de pesquisas.

É o que vejo agora, nessa cozinha que inventa seu próprio nome, "tecno-emocional". Os cozinheiros envolvidos numa estratégia de se comunicar emocionalmente, tecnicamente, artisticamente. Cada um faz uma coisa, mas favorecem uma circularidade entre eles, fala-se mais e mais de equipe, com as individualidades preservadas, mas um único fim a ser alcançado.

A pessoa sozinha não conta mais, eles interagem e aprendem uns com os outros. É uma meditação prazerosa, não são matemáticos, nem sociólogos, nem filósofos, inventam uma ordem com sedução, intuição, criatividade, arte, na procura dessa comida, desse gozo.

Tanto Marinetti quanto Macunaíma e a semana de arte moderna são inocentes, amorais, crianças, cheios de si e de sua invenção.

Da próxima vez podemos falar da influência sofrida pelos nossos modernistas na Europa, principalmente em Paris. Quem não leu "A cidade e as serras" de Eça de Queiroz, (livro fininho), leia que vai descobrir sozinho.


Endereço da página: