Folha de S. Paulo


Mudaram os encantos

Ao resenhar o interessantíssimo livro do Carlos Alberto Dória, "e-Boca Livre", um conjunto de posts do seu blog, me intriguei com a palavra que ele vem usando, "encantamento". Peguei um livrinho da Amazon, "The Enchantment of Modern Life", de Jane Bennet, e me pus a ler para decifrar o meu sociólogo preferido de comidas. Mas, não, me afirmou ele, tinha simplesmente lembrado do seu Max Weber com o "desencantamento" da condição humana contemporânea.

E ainda me contou "Uma vez, eu tinha uns 25 anos, entrevistei um ex-cangaceiro do bando de Lampião. E ele disse: "Quando Lampião era vivo, o mundo era encantado. Parecia que ninguém morria". (Logo eles, que matavam todo mundo). Esse negócio do encantamento nunca mais saiu da cabeça...

Menos mal, passemos ao cozinhês. Lembram-se da "Cidade e as Serras", do Eça, e o pobre Jacinto, vítima das técnicas, do cientificismo da época, do tédio da existência que o saturava? Nada mais podia agradá-lo. Entediado, jantava no dia da visita de seu amigo ostras clássicas de Marennes, sopa de alcachofras e ovas de carpa, frangos e túbaras, filé de veado macerado em xerez, com geleia de noz. E a sobremesa eram laranjas geladas no éter. E ele, inapetente.

"Estava perdido num mundo que não lhe era fraternal..." o tédio o matava, a cidade era um desencanto só, o mundo perdera a magia, o sagrado, era o fastio da vida, era a técnica, a razão!

Por acontecimentos que aqui não cabem o Jacinto foi de visita ao campo, à sua rude casa ancestral.

"Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar..." "Estava precioso (o caldo) e tinha fígado e tinha moela."

Começou assim o reencantamento de Jacinto pela vida.

A sensação de encantamento vem de alguma coisa que te surpreende, um quadro, um livro, uma flor, uma comida, uma música, um vinho, um lugar nunca dantes visitado. É um encontro inesperado para o qual não se está preparado. Um sentimento que nos arranca do estado confortável do costume, e de repente somos crianças de novo, há um encontro sedutor que revigora nosso amor pela vida.

Quem já sentiu ou teve a sorte de sentir isso num restaurante ou onde quer que seja que nos sirvam alguma coisa que ao mesmo tempo que nos seduz, nos perturba, abala a ordem das nossas estruturas? Já senti isso com Alain Chapel, Boulud, Atala, Helena Rizzo, Aduriz. Vai-se pelo ar o mundo trágico. O bom humor do encantamento adoça a capacidade crítica, nos torna mais generosos, diminui as certezas.

São segundos nos quais escapamos às limitações da nossa biografia, da cultura, da educação. Expandimos o horizonte, é algo mais na nossa vida. Há uma transformação por pequena que seja.

Na cozinha são coisas que se misturam, técnicas que desconhecíamos, surpresas nas papilas, alegria, rimos sozinhos, mas são gostos que podem ser reconhecidos por todos. Valem para todo mundo.

Aduriz, o cozinheiro basco, nos descreveu uma vez seu modo de se apropriar de um ingrediente. Olhava um tomate até o momento mágico em que ele se transformava em outra coisa, perdia a estrutura de tomate e se envolvia com tudo que estava ao redor. Uma transmutação. E daí o pensamento criativo vai entrar e forçá-lo a pensar naquele tomate de modo diferente.

Como a Roberta Sudbrack que se curva tanto tempo sobre um ingrediente que transforma sementes de quiabo em caviar. No clima de encantamento nos sentimos misturados às coisas, unidos ao brócolis e apaixonados pela ervilha torta.

Esses momentos costumam acontecer conosco com mais frequência se estivermos bem preparados. Se nos exercitamos na observação das cores (oi, aí os cadernos de pintar servindo de exercício!) sons, padrões, repetições, movimentos, cheiros, texturas. Quanto mais tempo tivermos passado na vida observando e comparando, mais teremos possibilidades de transformar, misturar, fazer mágica.

O nosso mundo não está desencantado, simplesmente mudaram seus encantos, enxertias, possibilidades, aumentou a maravilhosa complexidade da vida.

É isso, se nós cozinheiros estivermos encantados estaremos no clima de engajamento com o mundo e seus problemas e com vitalidade bastante para renovar o planeta e amar o próximo.


Endereço da página: