Folha de S. Paulo


Comida temperada com fagulhas

Não me perguntem por que todo mundo que já entrou num trem morre de saudade da comida. É claro que tem tudo a ver com a viagem, com o trem em si, pois como fazer alta cozinha naquela tripa sacudindo as entranhas, o cozinheiro de pernas bem abertas para se equilibrar? De onde viria o glamour?

Achei uma carta de leitora de 2006. Se não publico essas lembranças me sinto culpada como se escondesse dados históricos e importantes de um público que não viveu as ferrovias brasileiras. Vejam só, Lais de Castro repete o mesmo sentimento que só dá em trens cheirando a ferro e aperto nos corredores, a trilhos e camas estreitas, ao umbigo feroz das lembranças profundas. Quem jamais ouviu falar na deliciosa comida de aviões a jato?

"Meu pai era engenheiro ferroviário com passe livre em todas as ferrovias do Brasil. Eu, filha temporã. Às vezes deixávamos a mãe em casa e escapávamos. E as comidas! Naquele vagão comi um melão com presunto que nunca mais vi igual. E o bifão com batatas fritas. Sentaram-se ao nosso lado Carlos Lacerda, Vinicius de Moraes (o trem era chamado de trem dos covardes, daqueles que tinham medo de voar), Toquinho, Ciro Monteiro, Nara Leão.

Mas não é do Trem de Prata que quero te contar. É de um outro restaurante: o da velha e combalida Companhia Mogyana de Estradas de Ferro. Morávamos numa pequena estação chamada Bento Quirino (uma hora antes de Ribeirão Preto. Corria o ano da graça de 1960, por aí). No trem noturno só havia um bar, lindo por sinal, de balcão arredondado, no fundo do vagão. Vendiam-se ali desde as mais saborosas empadinhas até pão com manteiga na chapa, leite, café, biscoitos, frutas, cervejas, conhaque para quem queria dormir mais depressa. Misto quente, misto frio, guaraná, vitamina, de tudo um pouco.

No trem diurno, tinha o tal vagão restaurante. Que maravilha! Uma salada de palmito com o tomate bem vermelho e o bife a cavalo! Até o pão do couvert era melhor que todos os pães. E a água também, mineral com gás fornecida por uma cidade da rota, Jaguariúna.

De sobremesa, a goiabada com queijo de Uberaba, feita das goiabas do mato, ainda selvagens. Tinha das duas. Cascão e a de comer com colher.

A certa altura da viagem, velhinhas de um asilo vendiam cajus sensacionais. Em outro ponto uvas maduras e caipiras.

Em 1964 acabaram com os trens. Se eu pudesse voltar no tempo, um dia só, comeria de novo uma colher do arroz soltinho que acompanhava o bife com fritas. O trem era a vapor, movido a lenha. Tudo muito bem temperado com fagulhas.

Foi bom que você também se lembrasse do Trem de Prata. Senti na boca e na alma todos os cheiros e gostos de uma vez só, me engasguei de lembranças que só um bom trem barulhento pode dar." (Laís Castro)

Fico com medo de não contar aos outros todas essas lembranças. É como se guardasse, escondidos, dados de uma história do Brasil que não se conta nos livros. No mundo inteiro existe essa magia do trem, da Índia à Inglaterra, cortando os vales, poderosos, desafiando o tempo, o espaço, deixando para trás num minuto as pequenas casas iluminadas, palpáveis, seguros, dentro de proporções que podíamos entender.

E o que nos fica na memória, não são os horários, as bitolas, mas sim o pão na chapa e os os ovos fritos de gema mole.


Endereço da página: