Folha de S. Paulo


O foie gras que os chefs não merecem

Não sei onde li sobre esses gansos. Com a história de jornal de papel, on-line, mais livro, mais revista, sinto bastante falta de recortes. Não me lembro jamais de nada, passo os dias procurando referências que podem estar na revista australiana ou no Diário de Jundiaí.

Sei que li a mesma história no livro The Third Plate, do já tão famoso Dan Barber. É sobre a dehesa, um sistema de agricultura da Extremadura, região da Espanha, o ninho sagrado do jamón ibérico, onde os porcos são criados soltos e à vela de libra.

Só os porcos? Não. É o lugar dos foies gras naturais. Isso não existe, não pode existir. Para se fazer o fígado gordo despejam-se grandes quantidades de grãos goela abaixo das aves. Delicioso, mas nada natural.

Com a industrialização e as novas técnicas, o foie gras passou a ser cobiçado. Chegaram à conclusão que o fígado de pato poderia substituir muito bem o do ganso que é uma ave mais sensível, que se estressa, que reclama, que grita muito alto. E o cruzamento de raças diferentes de patos facilitou enormemente o processo. O que havia começado em 1812, isto é, uma camponesa alimentando o ganso todo dia para engordá-lo e matá-lo no Natal, se transformara numa indústria. Uma indústria polêmica, como sabemos.

Mas Dan Barber é um homem diferente e começou a se perguntar o porquê de seus grandes cuidados com seus cordeiros e não tinha nenhum escrúpulo de servir aves atochadas de milho. Os gansos e os patos são onívoros, digerem grãos melhor do que os ruminantes, mas não era o bastante para ele se conformar com a gavage, o processo de alimentar as aves. Não fazia sentido.

Foi daí que ouviu falar em Eduardo Souza. O homem que criava gansos sem gavage. Fez uma enorme viagem com sua amiga Lisa Abend até Extremadura, na Espanha para conhecer o milagreiro.

A chegada foi por uma estradinha de terra e lá estava o espanhol, muito parecido com um cowboy americano qualquer. A primeira pergunta depois dos cumprimentos foi:
- E que comida o senhor dá a seus gansos?
- Nenhuma. Eles comem o que querem.Quer ver?

Entraram num carro e fizeram uma bela volta pela fazenda. De repente pararam, a mando do fazendeiro que saiu pé ante pé, e depois até engatinhou em direção de uma centena de gansos.
- Hola, bonitas!, saudava as aves que se entupiam de azeitonas de uma oliveira próxima.
Dan Barber logo perguntou se não seria mais econômico vender as azeitonas e deixar os gansos em paz, ao que Eduardo respondeu: "não, eles comem só a metade. Eu vendo a outra metade. É assim que funciona. Eles comem o que querem, o quanto querem e deixam um tanto. São equilibrados".

Dan Barber ainda descobriu que a cor amarelo-marrom dos gansos, a cor preferida pelos chefs, vem da alimentação de milho. Os gansos que comem o que querem são... amarelo-marrom também, se se alimentarem de lupinos, uma planta que lhes dá cor, e que cresce na região como mato.
Para encurtar a história o chef viu que o fazendeiro tinha que procurar seus gansos, eles andavam pela fazenda, e na verdade, faziam o que queriam. Águias comiam metade de seus ovos, eles de vez em quando morriam de doenças, mas eram deixados lá a fazer o que quisessem.

O chef ainda viu um bando de gansos selvagens voando, num barulhão e se juntando aos da fazenda.
- Vieram visitar?, perguntou.
- É, quando migram dão uma passadinha por aqui e muitas vezes resolvem ficar. Sabe, os gansos gostam de ser felizes, também.

Mais tarde houve uma experimentação do foie gras do fazendeiro. Dan Barber jura que jamais comeu um fígado tão bom, quase sem gordura e com mais gosto de fígado do que o foie gras da gavage. E para concluir, o foie nem era temperado. Se queria os fígados com mais sal Eduardo plantava ervas salgadas, se queria com gosto de anis...
- Para quais chefs você vende esse foie gras?
- Não vendo para chefs, eles não merecem meu foie gras.


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