Folha de S. Paulo


Seis chefs de objetivos altos

Logo ao saber que a série dos documentários sobre chefs, Chef´s Table, havia chegado à Netflix, corri a assistir.

Como um fã de futebol assiste a uma partida importante. Gostei, coisa de foodie, basta ter a foto de uma salsinha que cozinheiro já gosta.

O diretor David Gelb deu atenção enorme aos lugares, à montagem dos pratos, à vida do cozinheiro dentro e fora do restaurante.

Foi ele quem dirigiu "O sushi dos sonhos de Jiro", de tanto sucesso. Bom, ao assistir aos filmes podemos chegar à conclusão que os chefs estão extrapolando.

Todos são perfeccionistas, todos morrem de paixão pelo que fazem, todos acham que vão salvar o planeta. Cada um deles é motivado por um objetivo maior que o da cozinha em si e, para nós, frequentadores ou não de seus restaurantes, passaram a ser figuras célebres, com seus concursos, livros, filmes, restaurantes onde se come a peso de ouro e onde eles desinventam a roda.

A ideia de tomar posse da tradição e transformá-la ao gosto do autor é o que faz a vida girar para todos eles. O chef Massimo Bottura, dono do Osteria Francescana, em Modena, casado com uma mulher que parece ser a coluna mestra do seu restaurante, bonita e articulada, não sabia o que era arte até se apaixonar, em Nova York.

A namorada o arrastava para o cinema, museus, exposições, achando que dentro dele havia uma grande veia criativa que não conseguira ainda se manifestar.

E, frequentando todos esses lugares, teriam referências que poderiam partilhar, pois para ela a vida das comidas era ainda um mundo muito desconhecido. (Mal sabia ela que estava se casando com um restaurante.)

Ele se intrigava com aquelas pinturas, pinceladas coloridas a esmo sobre a tela. Um dia foram a uma exposição e viram uma revoada de pombos pousada sobre as vigas da sala enorme. Perfeitas, embalsamadas. E observando melhor dava para ver cocô de pombo nas paredes e até nas obras de outros artistas, dependuradas nas paredes.

Foi a hora da descoberta para Massimo Bottura. "E isso o que quero. Espalhar cocô de pombo na cabeça dos chefs antigos, dos clientes que não entendem nada, na tradição que só enxerga a ponta do nariz. Vou transformar o tortellini que minha avó fazia em arte e todo mundo um dia vai me entender."

Não foi bem assim que aconteceu. Já estava disposto a vender o restaurante tamanha a reação contrária dos clientes de Modena quando um crítico americano, e por sinal ótimo escritor, se extraviou, ou melhor resolveu fugir de um engarrafamento, e comeu a tal comida-cocô-de pombo.

Adorou, nunca imaginara encontrar ali um cozinheiro das mesmas medidas que um três-estrelas parisiense. Jonathan Gold derramou-se em boa crítica no jornal e foi então que tudo começou.

O próprio Dan Barber cercado por uma belíssima fazenda, modelo de sustentabilidade, conta que um dia saiu às compras e viu aspargos maravilhosos.

Comprou bateladas e quando chegou ao restaurante a geladeira já estava cheia deles. Ruído na comunicação. Segundo ele próprio, seu maior defeito se manifestou, a raiva teimosa que ofuscou seu bom-senso.

Aos berros, avisou que o menu daquele dia seria só de aspargos, das entradas ao sorvete de sobremesa. Tentaram fazer com que desistisse da ideia, mas de jeito nenhum, não iria prejudicar as finanças tão bem cuidadas do restaurante por um erro de um idiota qualquer.

E vocês sabem como é. Obedeceram. O jantar naquele dia foi só de aspargos, uma degustação desde tapas ao sorvete.

Pois não é que o tal crítico Jonathan Gold passou por lá, como passara em Modena? Coincidência das coincidências, no dia seguinte, no jornal, em letras garrafais, estava a matéria louvando Dan Barber como o grande chef da sazonalidade, que levava o assunto tão a sério que servira, no auge da estação o mesmo aspargo em diferentes versões. Pois começou assim.

Francis Mallman que já andou por aqui muitas vezes, me lembro dele no Rubayat grelhando de tudo um pouco, faz o único chef diferente, meio nômade, macho alfa, junto à fogueira, pescando o peixe, carregando toras, a fumaça se elevando aos céus da Patagônia.

É o cozinheiro em estado bruto, a comida tem que ser gostosa, mas não precisa se mostrar como um poema enfeitado de flores no prato. Já é bonita por si, na sua rusticidade.

O que me incomodou um pouco, não sei se incomodará vocês, são os objetivos tão altos dos seis chefs. Estão longe, no panteão dos deuses e dos heróis.

Tão longe que, para alguns, depois de tudo visto, pode ficar na boca um retrogosto de decadência. Os chefs documentados estão expressando seu EU mais íntimo? E como é que todas as comidas se parecem tanto? Podem até ser confundidas? O ingrediente perfeito, o frescor inaudito, as pinças, as ervas catadas nas beiras dos montes? Os riscos de cores no fundo dos pratos brancos? A paisagem pintada no fundo do prato? Vai durar? E se o crítico não passar ao lado, na estrada difícil? Cuidado, chefs, é só um prato de comida!

Saiba mais
Dan Barber, Blue Hills restaurants (Stone Barns, e Nova York. EUA)
Massimo Bottura, Osteria Francescana (Modena, Itália)
Bem Shewry, Attica, (Melbourne, Austrália)
Magnus Nilsson, Fäviken (Järpen, Suécia)
Francis Mallman, El restaurante Patagonia Sur (Buenos Aires, Argentina)
Niki Nakayama, N/Naka ( Los Angeles, USA)


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