Folha de S. Paulo


Cliente come de tudo, até terra

Estou na fase de descobrir comida estranha. Noutro dia, coloquei no blog comida feita com carvão, tradição milenar no Oriente, mas relativamente nova no Ocidente e usada por todos os chefs muito novidadeiros, como o Andoni Luiz Aduriz, que publicou um livro, "Mugaritz", com comidas torradas até virar carvão. Pensei que estava um pouco abilolado. Mas, não, estava apenas copiando técnicas que aprendera no Japão.

No Haiti, por ocasião do terremoto, quiseram se aproveitar da venda de bolachas de terra para falar da miséria. Não era o caso, porém. Uma mulher que as vendia deu a receita. Uma mistura de argila, manteiga e água modelada como pires e seca ao sol. Aprendeu a fazê-las com a mãe, que aprendeu com a avó, que aprendeu com a mãe...

Não são uma invenção pós-terremoto. É a geofagia (prática de comer substâncias como argila, frequentemente para melhorar uma nutrição deficiente em minerais). Mulheres são as principais comedoras de barro e argila em quase todo o mundo. E as mais gulosas são as grávidas. O próprio desejo de comer o barro pode ser a indicação da gravidez.

Os povos que tomam leite e comem carne geralmente não comem barro, somente aqueles de dieta formada só de plantas, o que confirma um grau maior de pobreza.

Os escravos do Novo Mundo, removidos à força da África, traziam seus costumes de comer argila. Os proprietários de escravos viam nisso a origem de uma síndrome fatal, "cachexia africana" ou "mal d'Estomac", que dava preguiça, anemia e vontade de comer terra. Faziam tudo para impedir esse hábito, e temos relatos de viajantes estrangeiros no Brasil mostrando os escravos com focinheiras afuniladas que cobriam o rosto e que os impediam de satisfazer desejos proibidos.

Agora descubro um restaurante em Tóquio, comandado pelo chef Toshio Tanabe. Chama-se Ne Quittez pas. O cozinheiro foi treinado em Paris e obedeceu à risca o conceito da paisagem no prato.

Colocou com terra e tudo. Tem gosto? Terra tem gosto? Não muito. Uma textura diferente. Ele sempre adorou comer terra. Um dia fez qualquer coisa com ela, tem gente para tudo, gostaram e ficou no menu.

Compra a terra pronta, tirada de muito fundo, passada por laboratórios. Ele baba de alegria. É uma coisa viva, pura, uma coleção de microrganismos. O chef compra os saquinhos e, por segurança, a coloca no forno três vezes, uns cinco minutinhos de cada vez. Daí vai para a água fervente por 30 minutos. Escorre, passa por malha fina, deixa descansar e a terra se separa, fica o líquido e o sólido. Usa a água para molhos e geleias.

Os clientes comem sem medo. Pagam bem. Acham com gosto de chão molhado depois da chuva, particularmente delicioso.

Mas o que me intriga, me mata, me humilha, é o desdém dos gringos com a farofa, aquele poema. Comem pó de carvão e terra e fazem cara de nojo para a farofa, esse poema? Vamos à campanha, levantar bandeira, elevar a farofa ao posto que lhe é de direito, de rainha da mesa de qualquer canto do mundo. Farofa, farinha, frisada, fúlvida, fundamental.

ninahorta@uol.com.br


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