Folha de S. Paulo


Dia de fúria em São Paulo

PARA CONSEGUIR comprar o terno do casamento, Zeca decide vender a bicicleta. Recebe por ela 3.000 cruzeiros. Antes de entregá-la, dá uma última volta: em um bairro próximo ao centro de São Paulo, corre por avenidas largas, cruza com um ou outro carro, passa por poucos prédios em construção, muitas casas e imensos terrenos baldios.

É uma das cenas centrais de "O Grande Momento" (1957), de Roberto Santos. O filme tornou-se um clássico do cinema brasileiro e tem como um dos protagonistas a própria cidade. É São Paulo, mas parece outro lugar, outro país, outro planeta. Cenas como essa causam hoje, 51 anos depois, um estranhamento equivalente a um desses delírios de ficção científica.

Lembrei-me da marginal Tietê, na semana passada, quando carros chegaram a registrar uma velocidade média de 7 km/h -a bicicleta de Zeca (Gianfrancesco Guarnieri) era bem mais ligeira.

Oito anos depois de "O Grande Momento", foi lançado "São Paulo S.A.", de Luis Sérgio Person. "Somos nós [São Paulo] que impulsionamos o Brasil (...) Quem poderia imaginar que o Brasil produziria automóveis? São mais de 200 mil veículos por ano", dizia, vibrante, o industrial Arturo (Otelo Zeloni) para Carlos (Walmor Chagas).

Pois em 2007 o Brasil fabricou quase 3 milhões de unidades. E São Paulo, cidade sempre pronta a "impulsionar" o país, atingiu recentemente a marca de 6 milhões de veículos em circulação.

Person capta justamente esse momento de transição entre a cidade tranqüila de "O Grande Momento" e a SP engarrafada de hoje. Numa cena, operários retiram os trilhos dos bondes em meio a um já considerável vai-e-vem de carros e pedestres; noutra, os participantes da São Silvestre ainda correm em ruas de paralelepípedos.

De lá pra cá, a cidade se transformou, mas o cinema, com exceções pontuais, mal acompanhou essa expansão. Nos últimos anos, no entanto, filmes como "Os 12 Trabalhos", "Não por Acaso", "A Via Láctea" (os três de 2007) e "O Signo da Cidade" (2008) reencontraram as ruas. Em que pese a qualidade irregular, é interessante como esses filmes trazem o mal-estar urbano para a ficção. Uma cidade feia e confusa precisa se olhar no espelho -é melhor que quebrá-lo.

Na última quarta, Kassab anunciou seu plano de ações para aliviar o trânsito. Sem medidas radicais, restringe o estacionamento nas ruas, operações de carga e descarga, entre outras alternativas.

Parece muito pouco. Não vai demorar o momento em que, como Michael Douglas em "Um Dia de Fúria" (1993), um sujeito vai abandonar o carro no congestionamento e sair por aí, enlouquecido, destruindo o que encontrar pela frente. Neste dia, Hollywood será aqui.

NAIEF HADDAD é editor-adjunto da Ilustrada.


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