Folha de S. Paulo


'Morte vai tirar as coisas que tenho e são lindas', diz Ney Latorraca aos 73

Não, Ney Latorraca não vai se aposentar agora, como anunciou com alarde há duas semanas, alegando que não queria mostrar sua "decrepitude" nos palcos.

*

"Foi uma frase de efeito, para chamar a atenção. Para o foco brilhar em mim. Para as pessoas me perguntarem justamente sobre isso", diz o ator de 73 anos em seu camarim no Teatro Sérgio Cardoso, no centro de São Paulo, horas antes da sessão para convidados do musical "Vamp", na segunda (18). "Agora começou uma campanha 'Fica, Ney!'. Tem convite chegando que é uma loucura", brinca. Eu não consigo parar. Não me deixam!", diz ele a Bruno B. Soraggi.

*

"Decrepitude é quando você perde a noção das coisas. Há pessoas mais jovens que eu que já morreram e não sabem", segue Ney. "O que eu não quero é fazer papel de ridículo. Tem que ter dignidade. Claro que posso fazer um rei Lear [de Shakespeare]. Aliás, a dramaturgia é muito mais generosa com os homens do que com as mulheres. Tito Andrônico, do Shakespeare, você pode fazer com 200 anos."

*

"Escrevam coisas que combinem comigo, como em 'Alexandre e Outros Heróis' [especial de 2013 da TV Globo baseado em contos de Graciliano Ramos]", pede ele. "Um ano antes, eu estava no hospital [por causa de complicações em uma cirurgia para a retirada de pedra na vesícula], cheio de fios, quase morrendo. E de repente me vejo de smoking em uma festa, indicado a prêmio [o programa concorreu ao Emmy]."

*

"Viver é muito intenso. Falar é intenso, pagar boleto é intenso. Não consigo ficar só contemplando", diz. "Representar é uma grande trepada. Talvez a melhor de todas. Porque tem o aplauso no fim. E o que me mantém, me dá tesão, é o aplauso. Eu adoro."

*

É assim desde sempre. "Quando contei aos meus pais que ia fazer teatro [ainda adolescente], eles ficaram preocupados. Mas eu disse: 'Vou ser uma estrela!'". Admite: "Sou muito vaidoso. Qual é o problema? Sem magoar ninguém e sendo generoso, com a minha vaidade carrego os outros para brilharem. Todos têm que brilhar. As pessoas nasceram para isso."

*

Nascido em Santos em 1944, Antonio Ney Latorraca é filho único de Alfredo e dona Nena, um casal de cantores de cassino "que viveu em pensões" e "nunca pôde dar" a ele "gibis ou brinquedos". "Meus pais eram pobres e deixavam isso claro. Não tinha essa de ficar magoado. Eu brincava com uma caixa de charutos e achava o máximo. Me sentia parte de um trio interessante e diferente."

*

Aos seis anos, ajudava os pais com o "dinheirinho" que ganhava gravando vozes no rádio e entregando marmitas no Instituto de Educação Canadá, onde estudou e repetiu três vezes em matemática.

*

No colégio, descobriu o teatro. Em 1965, mudou-se para São Paulo, onde foi selecionado para participar da peça "Reportagem de um Tempo Mau", de Plínio Marcos. O elenco acabou preso por causa da censura. "Fiquei um dia na cadeia."

*

Aos 22, começou a estudar na Escola de Arte Dramática (EAD). Ele se orgulha de "nunca ter faltado a uma aula" dos três anos de curso. "Tirei dez em drama e dez em comédia."

*

Na época, já buscava se fazer notar. "Eu levava fotos dos espetáculos para divulgar nos jornais. Não adianta fazer algo interessante e ninguém assistir. As escolas de teatro deveriam ensinar como lidar com a imprensa."

*

Mudou-se para o Rio nos anos 1970. "Eu e a Bruna [Lombardi] saíamos pela praia espremendo cravo dos outros", lembra o ator.

*

Diz que recentemente foi sondado para fazer um filme com Brad Pitt e Tommy Lee Jones. "Respondi: 'Meus queridos, não me enlouqueçam. Meu inglês não está com essa bola toda'. Posso decorar a fala, fazer a cena. Mas como vou falar com a continuísta ou com o maquiador?"

*

Antes de entrar em cena, pede proteção à mãe, "que está sempre comigo", e a Marília Pêra (1943-2015), sua madrinha de formatura na EAD. "Sinto tremendamente a falta dela. Falávamos todo dia."

*

Católico não crismado, Ney carrega na orelha esquerda um brinco com o brilhante tirado de um anel que a mãe usou até morrer, em 1994, aos 71 anos. "De vez em quando a Claudia Raia tenta pegar para ela", brinca.

*

Conta que a sugestão de adaptar a joia foi de Fernando Henrique e de Ruth Cardoso. "A morte da minha mãe foi o momento mais triste da minha vida. Eles sugeriram que eu fizesse algo para usar e me lembrar dela."

*

Em 2014, votou em Aécio Neves (PSDB-MG) para presidente. "E aí aconteceu o que está acontecendo. Vou fazer o quê? Minha classe toda votou no Lula. Não posso crucificar os meus amigos nem eles a mim." Está sem candidato para 2018. "Pela idade, nem preciso mais votar."

*

Ele é eleitor no Rio, onde mora perto da lagoa Rodrigo de Freitas, área em que caminha diariamente para se exercitar e "conversar com as capivaras" que lá vivem. A fotografia que usa em seu perfil no WhatsApp é a imagem de um desses animais.

*

"Elas são minhas amigas, me conhecem. Não gosto que mexam com elas. Sempre falo: 'Cuidado com os humanos'. Um dia, vi um garoto jogando pedra nos filhotes. A mãe foi lá e mordeu a mão dele. Não arrancou o dedo, não. Bem feito. Criança chata."

*

Ney não tem filhos. "Pensei em ter e depois desisti."

*

Quando morrer, deixará seu patrimônio para quatro instituições de amparo a artistas e a doentes.

*

Sobre grandes amores, Ney prefere não falar. "Os que não forem citados vão ficar magoados", diz. Já namorou Christiane Torloni, foi casado com a atriz Inês Galvão e teve namorado. Hoje, diz estar sozinho.

*

"A essa altura, não dá mais para falar de sexualidade. Recentemente, o Caetano [Veloso] disse em entrevista que é 'sexos'. Eu tenho todos os sexos. Você não precisa entrar em uma suruba. Em um olhar ou aperto de mão pode ter milhões de sensações. Até comer é um ato sexual."

*

A complicação que enfrentou por causa da cirurgia na vesícula, em 2012, foi "um divisor de águas". "Todo mundo achava que eu ia morrer. Mas voltei. Poucas pessoas têm essa segunda vida." Ney parou de fumar há 14 anos e não bebe mais.

*

"O tempo passou a ser muito importante", segue. "Virou um grande aliado para eu fazer as coisas que quero ou para não fazer nada."

*

Afirma não ter medo da solidão. Da morte, sim. "Ela vai tirar de mim as coisas que eu tenho e que são lindas."

*

Às 20h15, uma assessora avisa que faltam apenas 15 minutos para ele entrar em cena. Ney prepara uma dose de café com leite em uma máquina de cápsulas e se dirige à saída do camarim. Já na porta, despede-se. "Tchau, querido. Aplaude, viu?"


Endereço da página:

Links no texto: