Folha de S. Paulo


Aos 54, Nando Reis diz que se cuida, está sóbrio e vai viver até os 100 anos

Nando Reis precisa de férias. Aos 54 anos, ele está com o pé na estrada desde 1982, quando, com oito amigos, formou a banda Titãs.

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O roqueiro diz que vai dar um intervalo de "uns seis meses" na carreira. Enquanto isso não acontece, ele estreia na próxima sexta (4) o show "Trinca de Ases", com Gilberto Gil e Gal Costa, que depois de São Paulo parte em turnê por outras quatro capitais.

Ao mesmo tempo, emenda um show atrás do outro de "Jardim-Pomar", seu 12º disco depois que decidiu pela carreira solo. Diz que levou "54 anos" para fazer o disco, "uma reflexão atual" do que viveu até agora.

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E Nando viveu, como mostra nesta conversa com a coluna, em que relata a infância em meio à "tragédia" de dois irmãos que enfrentaram sequelas da meningite, a juventude gloriosa de roqueiro, o baque da morte da mãe, o mergulho nas drogas, o descasamento e novo casamento com a mulher, Vânia, e o medo de envelhecer. "Eu sempre pensei muito na morte", diz. Abaixo, um pouco da história de Nando, com começo, meio e fim.

O COMEÇO

Família - A minha história familiar é bastante decisiva e forte. Eu tenho quatro irmãos. O Zeco, acima de mim, cinco anos mais velho, e a irmã abaixo, a Lulu, os dois tiveram meningite.

O Zeco ficou surdo e a Lulu teve paralisia cerebral. Ficava 24 horas por dia com uma pessoa ao lado.

E isso foi decisivo na minha vida. As diferenças foram relativizadas pela proximidade. Quando eu nasci o Zeco já era surdo e quando a Lulu ficou doente eu tinha 3 anos.

As famílias na época escondiam situações como essa. Eu não estou condenando, de maneira alguma. Mas nós éramos diferentes. A gente ia passear na praia, em Ubatuba (SP), com a Lulu.

Era uma barra porque a Lulu gritava, era um pouco embaraçoso. Mas, ao mesmo tempo, era isso aí. Bicho, beleza. Eu sou ruivo sem nenhum ruivo na família, o outro é surdo, um é economista e a outra foi estudar filosofia. Era uma diversidade.

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Meu pai [José Carlos] é engenheiro. Minha mãe [Cecília] fez fonoaudiologia na PUC por conta da surdez do Zeco e abriu uma clínica. Eu me lembro dela estudando. Eu ficava em casa, sozinho. Sempre vivi num mundo fantasioso. Desenhava, escrevia.

A minha relação com música se deu dentro de casa. Mamãe tocava violão. A gente ia a shows, comprava-se discos. Até minha relação com as cantoras, a Cássia [Eller], a Marisa [Monte], tem a ver com o que mais me encanta, a voz de uma mulher. Relaciono isso à minha mãe, que cantava, tinha voz linda.

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A minha mãe tinha uma beleza...eu tinha uma relação muito forte com ela. Eu sempre achei que era o filho preferido. Alguns dos meus irmãos confirmam [risos].

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A mamãe chorava todo dia. Ela chorava, eu chorava. Ela falava que eu era manteiga derretida. E eu sou!

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A mamãe morreu em seis meses, de um câncer fulminante. Foi rápido e inesperado. Eu tinha 26 anos. Os Titãs tinham estourado e eu já estava na estrada, deslumbrado, "noossa, é isso o que eu quero", dinheiro, fama.

A gente [Titãs] estava gravando o disco "Õ Blésq Blom". Eu me lembro que fui para o Rio de Janeiro e fiquei muito triste lá. Muito, muito [contém as lágrimas]. Ela faz falta até hoje. Eu era muito apaixonado por ela. Muito.

Drogas - Eu acho que sim [passou a consumir mais drogas e álcool depois que a mãe morreu]. É natural que a gente queira se anestesiar.

Eu estou há um bom tempo sóbrio. E me mantenho vigilante. Fiquei um ano e meio sem beber, voltei, estou agora há um ano e um mês [sem consumir álcool].

Eu já bebi muito e foi ruim. Atrapalhou a minha vida profissional, a vida familiar. Eu já bebi tudo o que precisava.

A relação com o álcool e as drogas sempre me tornou autocentrado, acuado. Não há um que escape ileso do uso abusivo. Já a sobriedade e a lucidez abrem janelas. Eu estou muito feliz, mesmo.

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Eu achava que tinha [relação entre o álcool e a produção musical]. Sempre sofri da tal síndrome do papel em branco. O uso do álcool tinha essa ignição de sair da inércia, de dar início [à composição]. E se confundiu a ideia de que o estado de embriaguez propiciava uma qualidade de criação. "Bullshit" [besteira]. Nada a ver. Eu hoje trabalho igualmente.

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Dos 30 aos 40 anos, era uma fartura. Mas a idade traz um ritmo diferente de produção. Menor. Porque eu já fiz muitas coisas e não quero fazer igual, porque eu também sou preguiçoso. Acho a preguiça importante inclusive.

O MEIO

Vânia - Eu conheci a Vânia em 1978, com 15 anos, no Colégio Equipe. Viramos amigos, de fazer lição junto. Sempre fui apaixonado por ela. Mas só namoramos mais tarde, o que foi sábio.

Fizemos colegial juntos. Depois eu fui fazer Matemática em São Carlos. Uma loucura, uma cagada. Nesta época começaram os Titãs –uma razão forte para eu ter abandonado a faculdade.

Eu e a Vânia sempre tivemos essa coisa de conversar. Me lembro em 1978 do meu pai chegando em casa, ele queria me matar porque eu estava há duas horas no telefone. "Só da ocupadoo!" [risos] Naquele tempo as casas tinham só um telefone, fixo.

Ou seja, há 40 anos eu falo com a Vânia praticamente todos os dias –mesmo quando nos separamos porque já tínhamos quatro filhos. Então ela é a pessoa com quem eu mais convivi na vida.

Nos casamos em 1985. Separamos em 2003. Voltamos em 2010. Três anos depois eu fiz um show no Equador. Resolvemos nos "casar" lá. O padre da catedral falou "vem depois da missa que eu dou uma bênção para vocês".

E acabamos eu e a Vânia, ela de noiva e eu de terno, num altar. Não tinha ninguém na igreja.

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Que músicas eu fiz pra ela? Todas. Há músicas feitas para outras pessoas? Sim. Mas a matriz da relação amorosa, que é construída com alguém que não a mãe, foi descoberta e construída com ela.

A longevidade do meu casamento se deu pelo conhecimento da importância da pessoa na ausência. Quando estava num lugar belo, mesmo com outra pessoa, eu pensava: "Poxa como eu queria que a Vânia estivesse aqui pra ver isso". Levei ela sempre dentro de mim.

Titãs - A minha crise [dos 40 anos], eu identifico rupturas por circunstâncias inesperadas. A morte do Marcelo [Fromer, guitarrista dos Titãs que foi atropelado em 2001] e depois a da Cássia [Eller, de parada cardíaca, no mesmo ano] me trouxe um senso de urgência, de desespero.

Primeiro impulsionou a sair dos Titãs, onde eu já vivia um conflito. Eu pensava: "Estou com 40 anos. Estou no mesmo lugar há muito tempo. Eu não posso ficar com os meus sonhos pendurados numa prateleira do futuro". E isso se estendeu ao meu casamento. "Eu quero ver a vida sem ela. Eu preciso e quero."

Sucesso - Faço muito dinheiro. Ontem, numa reunião, falei: "Nossa eu gero...". Eu, não. O Nando. O nome, o trabalho, o artista. Eu trabalho para ele [risos]. Sou um funcionário do Nando Reis.

Parafraseando Tom Jobim, fazer sucesso no Brasil é uma ofensa. Me intriga [o fato de sempre estar nas listas dos mais tocados mas não receber prêmios relevantes].

E tenho público em todo lugar. Eu sou popular. Pop.

Parece que, pelo fato de eu ser popular, a minha música não tem sofisticação poética.

Me incomoda mas não há nada que eu possa fazer.

O FIM

Envelhecer - Eu não tenho mais saco de viajar tanto, de me deslocar. Eu tenho show todo fim de semana. Eu quero parar porque quero viver um pouco outras coisas.

Envelhecer tem aspectos inegáveis: a parte física, o cabelo que cai. Mas eu me cuido. Me alimento bem. Faço musculação e fisioterapia. Fazia cinco vezes por semana, mas estava me machucando. Eu não me machucava aos 30 anos [risos].

Morrer - É inquestionável que a passagem do tempo quebra a onipotência de que tudo é eterno e de que o tempo é inesgotável.

Eu sempre pensei muito na morte. Mas pensar na morte não é ser mórbido. Sempre fui apegado à vida. Na semana passada um tio meu morreu aos 102 anos. Costumo dizer: eu vou viver até os 100.


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