Folha de S. Paulo


Tenho medo sair de casa, imagina quem não é famosa, diz cantora trans Liniker

Até alguns meses atrás, a cantora Liniker, 21, não sabia bem o que responder quando algum repórter perguntava se ela se identificava como homem ou mulher. Dizia apenas que ainda não sabia o que era.

*

"Aí eu vi um texto em que estava escrito 'o cantor Liniker' e isso me incomodou profundamente. Não sou cantor, sou cantorA", diz, com ênfase no "a".

*

Há anos ela já era tratada no feminino por pessoas próximas, mas, ao falar com a imprensa, evitava dar chances de ser "catalogada". "Queria entender por que processo eu tava passando, pra onde o meu corpo tava indo, pra onde eu tava navegando a minha vida", explica ao repórter Bruno Fávero no sofá do seu apartamento em Santa Cecília, no centro de São Paulo.

*

Ela comemora o espaço conquistado por artistas LGBT, mas se entristece com o tratamento reservado a mulheres trans, inclusive a ela.

*

"Você imagina o que é sair de casa todo dia com medo? Tenho medo de sair de noite, sair de dia. Não sei o que pode acontecer. É um medo que entala. Isso porque eu tenho visibilidade, imagina quem não tem."

*

Entre os exemplos de discriminação que ainda sofre, cita "olhares tortos" quando entra em banheiros femininos e o tratamento ríspido por parte de seguranças de lugares que já visitou.

*

A carreira de Liniker despontou no fim de 2015, quando, ainda desconhecida, publicou no YouTube três vídeos do disco "Cru", de canções que compusera com sua banda, Os Caramelows. Em cinco dias, foram mais de 5 milhões de visualizações.

*

A cantora, que não tem gravadora, crê que suas chances de estourar teriam sido bem menores em um tempo sem internet. "Não acho que uma cantora negra e trans teria lugar no esquema tradicional das gravadoras", diz.

*

Desde que os vídeos foram ao ar, sua vida virou pelo avesso. Saiu de Araraquara, onde nasceu, e se mudou para São Paulo. Ainda teve que se acostumar com a fama repentina.

*

"Lembro da primeira vez que eu andei de metrô depois de lançar o disco. Uma pessoa começou a tremer e chorar ao me ver. Eu nunca tinha passado por nada parecido, ninguém dá uma cartilha explicando como é. Foi um choque", diz.

*

Aprendeu a lidar com o carinho dos fãs, mas reclama que a carreira atrapalhou a vida amorosa. "Depois que eu apareci como cantora, as pessoas acham que eu não tenho sentimentos, não tenho vontade de beijar, de transar. E, ainda mais sendo uma travesti preta, o afeto é muito negligenciado. Às vezes me sinto desumanizada."

*

Também nunca havia saído do país. Neste ano passou férias no Uruguai e se apresentou no festival South by Southwest, no Texas. Em maio, começou sua primeira turnê internacional: cantou no festival Primavera Sound, em Barcelona, e depois em Londres, Berlim, Portugal. Em agosto, faz show no SummerStage NYC, em Nova York. No Brasil, se apresenta no Coala Festival.

*

"Ir ao Texas foi uma experiência maluca. Eu corri de dois tiroteios", lembra. "Estava em um bar e de repente alguém do lado de fora atirou pra cima. Foi aquele enxame de gente entrando desesperada. Aí num outro dia aconteceu a mesma coisa. Tava com uma amiga e gritei 'ai Gabi, não saí do Brasil pra morrer aqui!'", conta rindo.

*

Prestes a completar um ano em São Paulo, ela não se vê morando na cidade por muito tempo e diz que a relação com a capital paulista é "metade amor, metade ódio". "São Paulo me suga, consome muito, energeticamente. É muita coisa atravessando, muita informação, muito barulho". No futuro, diz que vai morar "no meio do mato".

*

Até que esse dia chegue, o jeito de fugir da cidade foi encher o apartamento de plantas, "pra sair do concreto", e escutar muita música. Dois dos discos que mais têm ouvido são "As Canções Que Você Fez Pra Mim", de Maria Bethânia, e "O Meu Nome é Qualquer Um", de Rômulo Fróes e César Lacerda.

*

Ela conta que cresceu ouvindo música negra, principalmente brasileira, mas também nomes como Mariah Carey, Whitney Houston e Beyoncé. Sua mãe, Ângela Barros, que criou sozinha Liniker e o irmão de 15 anos, dá aulas de samba rock e foi vocalista de uma banda de pagode chamada "Toque Feminino" nos anos 1990. Com o pai, tem uma relação distante.

*

Liniker lembra da infância em Araraquara com carinho, embora afirme que passar pelo processo de se entender como mulher tenha sido muito difícil. A cidade, diz, é pequena e conservadora, e a cantora tinha medo da reação dos vizinhos e mesmo da família.

*

No fim, diz que a mãe, os parentes e os amigos a apoiaram. "Mas claro que sempre tem um ou outro tio machista e homofóbico, né? Pra esses eu não dou Ibope", afirma.


Endereço da página:

Links no texto: