Folha de S. Paulo


Blocos em SP banem marchinhas com 'mulata' e vetam até Biel no Carnaval

Semanas antes do Carnaval, o bloco MinhoQueens anunciou nas redes sociais o veto a marchinhas com mensagens machistas ou preconceituosas. Pela primeira vez na história da internet, não houve polêmica. O público do grupo (ao menos os que opinaram) apoiou em massa.

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"A gente tem preocupação de não fazer nada que vá machucar ninguém. Sempre pensamos nisso, então quem vai no bloco tá com a gente", diz o organizador Willians Medeiros à repórter Letícia Mori.

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O bloco com temática drag queen sai no dia 25, no largo do Arouche, e é um dos 495 que vão desfilar em SP. É ainda um dos que questionam as velhas marchinhas, movimento também visto no Rio. O MinhoQueens não tocará "A Cabeleira do Zezé", "Maria Sapatão" nem "Dá Nela". Já "Mamãe Eu Quero" e "Ó Abre Alas" seguem no repertório, assim como hits de pop e funk.

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"Mas as músicas do Biel, depois de tudo que aconteceu, vão ficar de fora", diz Willians. O funkeiro caiu em desgraça no ano passado, quando foi acusado de assédio.

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Já quando Thiago França, do bloco Charanga do França, resolveu expor sua opinião, as reações não foram os unânimes "arrasa!" que o pessoal do MinhoQueens ouviu.

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Declarando aberta a temporada de problematizações carnavalescas, o músico escreveu que se recusaria a tocar "O Teu Cabelo Não Nega". "O verso 'mas como a cor não pega, mulata' é racismo demais pro meu gosto", disse o líder do bloco, que sai no dia 27 em Santa Cecília. Apesar do tom bem-humorado do post, seguiu-se discussão enorme.

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"Algumas pessoas concordam comigo", diz França. "Por outro lado, tem uma corrente que acha que não se deve mexer nisso, que tira o foco de questões mais urgentes, o racismo no ambiente de trabalho, a violência doméstica", afirma ele, que não se irrita com a maioria das outras marchinhas. "Essa me incomodava há muito tempo. Como artista, não quero falar coisas que não me representam."

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Em uma madrugada alguns dias depois de França levantar a discussão, outro Tiago —o Abravanel— fazia o esquenta de seu bloco na Audio Club. Desde a época do espetáculo "Tim Maia", o cantor e ator faz um acréscimo na música "Vale Tudo". Na parte da letra que diz "só não pode dançar homem com homem, nem mulher com mulher", ele ressalva: "Pode sim!".

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"Não tenho vergonha de dizer, pelo amor de Deus, para que as pessoas deixem de ser preconceituosas", explica depois Abravanel, que comanda o bloco Gambiarra no dia 19 na avenida Faria Lima. Apesar da brincadeira, ele diz ser contra procurar "pelo em ovo". "Importa mais a atitude do intérprete do que a letra em si."

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Na plateia, detalhes passam despercebidos pelo publicitário Bruno Firmino, que dança com o namorado. "Acredita que não ouvi essa? Eu tô nem aí para o que diz a música. Pode tocar essa, pode tocar marchinha. Só sinto falta se não tiver isso aqui, ó", diz ele, rindo e apontando para uma cerveja na sua mão.

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Fazer adaptações nas letras é controverso. Para Thiago França, "não precisa retalhar a composição de ninguém. É só não tocar". Já Julia Valiengo, do bloco Pagu (que é formado por mulheres e levanta a bandeira feminista no dia 28, na Sé), acha que parar de cantar as músicas pode ser sinal de radicalismo.

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"Se puder ter liberdade poética de corrigir coisas que a gente hoje em dia considera preconceituosas, é um caminho", diz ao repórter Joelmir Tavares. "Podemos cantar 'morena bossa nova' [em vez do verso 'mulata bossa nova', da marchinha homônima]."

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"Mulata", aliás, virou a palavra-problema. "A etimologia tem a ver com mula, vem da época da escravidão. É óbvio que a gente tem que tirar", completa Mariana Bastos, também do Pagu.

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Por outro lado, o bloco vetou a censura proposta por uma integrante a "Escrito nas Estrelas", famosa na voz de Tetê Espíndola. A participante viu na letra apologia de submissão da mulher. "Não enxergamos dessa forma. O politicamente correto às vezes age assombrando até coisas que não precisam de fiscalização", diz Mariana.

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O bloco Domingo Ela Não Vai (que toca axé dos anos 1990 e sai dia 26 no centro) toma cuidados, mas não lima músicas. "O axé sempre foi criticado pela alta carga de machismo", diz o organizador Alberto Pereira Jr. "Aqui quem canta é um gay, uma transexual. A gente não altera letras, mas ressignifica."

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Vocalista do bloco, Candy Mel se diz feliz com a onda de questionamentos. "Se a gente não identificar pequenas coisas que são extremamente machistas, contra trans, contra LGBTs, contra negros, se não fizer nem essas pequenas mudanças, como vai fazer as grandes?", pergunta a cantora, que é transexual.

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"É uma babaquice, uma falta de assunto", opina Ivo Meirelles, que se apresenta no Gueri-Gueri, no dia 18, no Cidade Jardim. "Vou cantar tudo. As marchinhas, por mais que as letras estejam fora do politicamente correto de hoje, foram sucesso", diz o cantor. "O público quer ouvir 'Deu Onda', 'Maria Sapatão', 'Baile de Favela'. É Carnaval, é diversão, é pula-pula."

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"Tem que parar de achar que questionar as músicas é uma chatice", diz Candy Mel. "Chatice é a gente sofrer preconceito." Sem posição fechada sobre a polêmica sonora, o Acadêmicos do Baixo Augusta (que sai no dia 19 na Consolação) optou por não tocar as músicas vistas como preconceituosas. "Nosso espírito é de diversidade e respeito", diz Simoninha, o puxador.

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"Eu entendo que é uma reflexão necessária. Só que certas músicas têm que ser observadas de um ponto de vista histórico. Precisa debater mais, mas não num momento em que ânimos estão exaltados, no calor da discussão."


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