Folha de S. Paulo


É um ato político, diz Ronaldo Fraga sobre desfile só com modelos trans

O estilista Ronaldo Fraga, que recrutou 28 transexuais —a maioria estreante em passarelas— para seu desfile na SPFW (São Paulo Fashion Week), diz que a iniciativa é um ato político.

"Numa época de ascensão de [Jair] Bolsonaro, [Marcelo] Crivella, bancada religiosa e bancada da bala, isso é fazer política. É minha forma de protesto", diz o mineiro, que em temporadas anteriores já levou para a semana de moda idosos, negros e refugiados.

A Folha acompanhou no Theatro São Pedro (região central) a prova das roupas e o ensaio, na noite de terça (25). O desfile está marcado para a tarde desta quarta (26).

'INHAÍ?'

"Olha elaaa", diz uma das participantes, ao reconhecer uma amiga na chegada para o ensaio. A produção tentou manter em segredo o nome do estilista para o qual as modelos iam desfilar.

Entre cumprimentos que vão de "inhaí" (a versão do "e aí?" na gíria LGBT) a "bee" (outro vocativo muito popular), elas vão se apresentando enquanto caminham para a plateia do teatro, até Ronaldo ser anunciado. Ele entra no palco sob aplausos e saúda as convidadas como "as grandes estrelas do desfile" e "parte da minha história e parte da nova história do Brasil, um tempo de resistência".

No camarim, Melissa Alonso, 30, é a primeira a ser maquiada e vestida. Saindo dali, vai assumir a identidade de "Stripperella" para fazer uma performance em uma boate da zona sul.

"Hoje não vai ser tanto 'bate cabelo'. Hoje é só close", diz, após receber a recomendação de Marcos Costa, que assina a beleza do desfile, para não lavar o cabelo até o dia seguinte.

Com unhas pontudas pintadas de vermelho, ela toca as roupas e acessórios, repetindo que "tá tudo muito lindo".

O penteado é "um cabelo Hebe Camargo com um 'podrinho' [desarrumado] da moda", explica Costa, que juntou mil penas de galo e 60 flores de cetim para pôr nas cabeças. Todos os sapatos são tamanho 40.

Ronaldo Fraga alisa os longos fios de seu bigode ao ver Melissa pronta e já usando um vestido da coleção. Aprova o resultado. "Tá ótimo, tá ótimo", diz e sai andando rápido para ver outra modelo.

Etyely Fernandes da Silva, 20, que se apresenta como "profissional do sexo e travesti", faz sua estreia no mundo da moda. É uma das mais empolgadas. Ela, que segundo a diretora do desfile, Roberta Marzolla, "tremia" no dia da seleção, é do Ceará e mora em São Bernardo do Campo. "Só vim porque sabia da importância de estarmos aqui, mostrarmos a nossa cara. Minha participação é política."

O cachê gira em torno de R$ 600, a serem pagos daqui a 30 dias.

BANDO DE RESISTENTES

Ronaldo chama todas para uma conversa no teatro. "Esta coleção fala de coragem, resistência e amor. Meu lema é: otimista só de raiva", diz, rindo, sentado no palco. "E aqui temos um bando de resistentes." As modelos aplaudem.

Uma incômoda troca de olhares corre a plateia quando o estilista lê o texto de apresentação da coleção, já pronto para distribuição a jornalistas e gravado em voz para ser exibido antes do desfile. Nele está escrito "o travesti", combinação que militantes de direitos LGBT combatem —preferem que o artigo seja no feminino, "a".

Atriz e modelo, Glamour Garcia, 28, procura o estilista no fim do papo. "Eu senti que todas tiveram um frio na espinha quando ouviram. Tem que corrigir", pede ela.

Ronaldo se desculpa e se compromete a dizer "a travesti" nas entrevistas sobre a coleção. "Mas pelo português está certo, porque é 'o' gênero. Mas na militância elas preferem 'a'. Uma delas me falou: 'A gente cresce querendo ser reconhecida como 'a''. Vamos adaptar."

GISELES

Passado o desconforto, a empolgação volta ao ambiente, enquanto as modelos disputam um espaço na frente do ventilador que aplaca suavemente o calor na sala usada como camarim.

"Elas estão se sentindo a Gisele Bündchen", comenta a designer de acessórios Gissa Bicalho, autora das peças do desfile.

"Geralmente eu sou a única trans nos desfiles", diz Ariel Moura, 19, que é modelo em Belo Horizonte e participa pela primeira fez da SPFW.

A seleção, diz o estilista, privilegiou a diversidade do Brasil, "um país mestiço" (há altas, baixas, magras, não tão magras), e os looks buscam "não reforçar o estereótipo, o caricato, e fugir do imaginário comum sobre trans, drags, gays".

Só uma das modelos é conhecida, a também mineira Carol Marra. "É uma forma de tirar da marginalidade. Espero que o público seja transformado e se sinta tão tocado quanto cada uma de nós se sentiu com o convite", afirma ela.

No fim dos trabalhos, após testar cada roupa, orientar as participantes sobre como desfilar e fazer ajustes de última hora, Ronaldo se mostra cansado, mas contente, com os olhos marejados.

Folha - Qual é a sua sensação?
Ronaldo Fraga - A roupa aqui é um detalhe. Ou melhor, a roupa aqui vem com uma história. A história de cada uma das modelos. Isso faz parte do meu pensamento de descobrir a nova função das velhas coisas. O mundo não precisa de mais um desfile, mais uma coleção, mais uma tonelada de roupas e sapatos. Moda é muito mais do que isso. Nem sempre trago meus filhos [Ludovico e Graciliano], que são adolescentes, para os desfiles. Só quando acho que eles realmente têm que ver, que aquilo vai ser importante para eles. E desta vez eu trouxe. Isso eu quis que eles vissem.

Por que decidiu fazer o desfile dessa forma?
Estamos no país onde mais ocorrem assassinatos de transexuais e travestis no mundo. E é papel da moda encampar as discussões da hora, reinventar histórias. A discussão do momento é sobre a questão de gênero. Quero usar a mídia espontânea que a moda consegue para trazer uma visão poética dessa "re-existência". A arte tem o poder de lançar poesia sobre terrenos áridos. Se o corpo, para as pessoas transexuais, é uma prisão, aqui a roupa é instrumento de libertação.

O tema desta edição da SPFW é "Trans". Foi por isso que resolveu trazer transexuais?
Não. Foi uma coincidência. Se você pode falar de outras coisas que vão além do comprimento da roupa da estação, acho que é muito válido. Estamos em tempos de guerra e eu vejo essas modelos como um exército. A bancada evangélica [no Congresso Nacional] traz muitos retrocessos. Por isso o desfile é um ato de coragem e resistência. E a gente não tem noção do poder de uma sementinha que a gente planta, do alcance que a moda tem no Brasil. Ainda se discute muito no país a questão do feminino. As pautas feministas se tornaram urgentes. Imagina o quanto um homem que se vê como mulher não sofre?

Como foi o processo de recrutar as modelos?
Foi difícil. Se você pensar que a primeira agência só de modelos trans foi fundada há apenas duas semanas em Los Angeles [EUA], imagina o que é conseguir esse casting aqui no Brasil. Alguém da equipe me perguntou, durante o processo, se eu não deveria pôr uma mulher entre elas, e eu disse que não. Não dá para acender uma vela para Deus e outra para o diabo. Nesse caso, ou você faz ou você não faz.

Teme alguma rejeição do consumidor final às peças da coleção por causa do desfile?
Quem acompanha minha história sabe o que penso, sabe as minhas preocupações. Já coloquei velhinhas e refugiados na passarela. Quem consome minha roupa compartilha também dos meus anseios. Depois que passa, vêm aqueles que dizem: "É marketing". Só não pensam que existe um risco para a marca. Se eu tivesse um gestor comercial por trás, talvez ele não deixasse fazer. Só se pensa em dinheiro. Se alguém vai deixar de comprar minhas roupas por causa desse desfile, é porque não era para ser meu cliente mesmo.


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