Folha de S. Paulo


Teria feito igual, diz Julia Lemmertz sobre protesto de atores de 'Aquarius'

Julia Lemmertz está com pressa. Com passos rápidos e uma mala de rodinha na mão, ela entra no Sesc Vila Mariana, onde está em cartaz com a peça "A Comédia Latino-Americana", como se estivesse atrasada. Faltam três horas para a apresentação, mas Julia tem uma nova cena para decorar naquele domingo.

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"É uma peça que nunca vai estar pronta, não tem um dia que você vai falar: 'vou chegar aqui hoje e relaxar'. Todo dia você está no fio da navalha" diz ela, já no camarim, à repórter Letícia Mori.

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Filha de dois atores, com 30 anos de carreira e cerca de 40 novelas no currículo, Julia, 53, está acostumada com a exposição, mas não gosta de dar entrevistas. "Quanto mais quietinha você ficar, melhor. Minha vida não é interessante", afirma a atriz, que há anos não lê notícias ou comentários sobre ela na internet.

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"Minha vida melhorou muito. Hoje em dia neguinho fala qualquer coisa, barbaridades, porque o anonimato faz com que você se sinta forte para esculachar o outro", diz. "Aí fico querendo responder... Não vou entrar nessa. E só falo se for sobre algo que precisa ser divulgado."

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Importante para ela, no momento, é o espetáculo dirigido por Felipe Hirsch, sobre o qual ela discursa apaixonadamente. "Exige muito mais do que a TV ou o cinema, mas é uma fonte inesgotável de inspiração. Me tira de um lugar mais cômodo, me sinto fervilhando." A montagem é a segunda parte de um projeto iniciado em março com "A Tragédia Latino-Americana". Nas duas peças são discutidas contradições do subcontinente a partir da sua literatura.

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"Não me furto a fazer TV, mas quero coisas mais episódicas, mais profundas. Séries, personagens diferentes do que já fiz", diz Julia. "Claro que há momentos em que você faz trabalhos porque precisa da grana para sustentar a casa, os filhos. Mas hoje escolho o que vai provocar o público, fazer que as pessoas se questionem, discutam." Julia tem um contrato com a Globo, que diz funcionar bem. "Se um dia o relacionamento não estiver bom para um dos dois lados a gente termina."

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Foi com essa tranquilidade que ela encerrou em 2015, depois de 22 anos, seu casamento com o ator Alexandre Borges. Há um mês, ele teve vídeos íntimos vazados na internet. Os dois são pais de Miguel, 16, e continuam amigos. Sempre questionada sobre o relacionamento, ela encerra o assunto quando o tema é o ex-marido. "[Na época do divórcio] eu não me preocupei com o que as pessoas iam pensar e não é agora que vou me preocupar", afirma.

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Solteira, ela continua morando no apartamento da família em Ipanema. "Prefiro pegar trânsito do que morar na Barra [da Tijuca, mais perto do Projac, central de produção da Globo]. Não moro lá nem a pau. Não gosto, não acho bonito, não é um estilo de vida que eu queira."

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Observando o rosto sem rugas e a pele de menina da atriz, é difícil acreditar que ela está prestes a ser avó –sua primogênita, Luiza, 28, que também é atriz, terá um bebê em dezembro. Olhando-se no espelho, Julia diz que às vezes se pergunta se deveria fazer algum procedimento estético. "Mas não tenho a menor coragem. Fico com medo de ficar com cara de outra pessoa. Prefiro envelhecer. É da vida. É uma etapa que todo mundo tem que passar. O que me preocupa mais é a memória, é ter gás para subir uma montanha, é o joelho."

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Um ator entra no camarim. "O pessoal já tá ensaiando?", pergunta Julia, preocupada. "Ainda não começou", o colega a tranquiliza. Menos ansiosa, a atriz fala da sua participação no filme "Pequeno Segredo", sobre a vida de Kat, filha adotiva da família Schürmann, que morreu de Aids aos 14 anos. O longa foi a indicação brasileira para concorrer ao Oscar, em meio a polêmicas envolvendo "Aquarius", que era o favorito. O diretor e os atores disseram que a escolha do outro filme era retaliação por terem protestado contra o impeachment de Dilma Rousseff no Festival de Cannes, em maio.

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"Pequeno Segredo" acabou sendo muito criticado e a confusão deixou Julia numa situação desconfortável, já que ela era contra o impedimento da presidente e foi simpática à manifestação dos atores de "Aquarius". "Eu provavelmente teria feito a mesma coisa. E o filme é fenomenal, incrível, 'filmaço'."

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"O 'Pequeno Segredo' é outro tipo de filme, é a história real de uma família, e tem que ser respeitado. Só sinto que, se tivesse estreado em outro momento, talvez atingisse mais gente e tivesse tido um carinho maior do que estando no meio desse imbróglio."

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Julia diz que se envolver com política gera desgaste, mas que ela não pode se eximir. "Não quero ser porta-bandeira, estandarte de nada. Mas não posso fingir que isso não está acontecendo. O alto número de votos nulos na última eleição é um sinal de que o que está aí não nos representa. Existe a necessidade de uma reforma política, mas a gente é muito passivo. Temos que participar, sair da bolha, olhar para o outro. Tem gente sofrendo, tem gente ferrada. Vamos ter um pouco de horizonte, de compaixão, de solidariedade."


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