Folha de S. Paulo


Fiquei chocada e não quis continuar no 'The Voice', diz Maria Gadú, ex-técnica do programa

Há dois anos Maria Gadú convive na sala de casa com uma pendência: o quadro inacabado com a imagem de um deus indiano que ela começou a esboçar –e ficou só no desenho, sem pintura. A cantora, que às vezes mexe com tintas e pincéis, quer fazer as coisas no seu tempo.

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"Bicho, foi uma loucura isso que eu vivi durante uns cinco anos", diz ela ao repórter Joelmir Tavares, sentada no sofá de seu apartamento, nos Jardins. Lembra que foi "sufocante" a fase em que despontou, em 2009. "E é uma parada meio louca ter o nível de exposição que eu tive. E o nível de amor que eu recebi, ao mesmo tempo. Você vai ficando sem espaço."

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Ficou tão cansada que adoeceu e precisou dar uma pausa. Com a cabeça a mil entre gravações, turnês, programas de TV e a necessidade de "desmitificar" tudo rápido ("Tinha que aprender que era normal estar com Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil, Milton [Nascimento]"), quis de novo buscar o espaço dela.

E voltou em 2014 para São Paulo, sua terra natal, deixando o Rio que a lançou à fama e com o qual ela nunca se entendeu muito bem. "Eu fui para passar uma semana e fiquei oito anos [risos]. Mas uns seis foram mais viajando do que na cidade." Urbana, não curtia praia nem o estilo de vida de alguns artistas lá.

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"São Paulo tem a cultura de ter que fazer e chegar a algum resultado. As pessoas vão para o Rio sonhando que alguém vai te ver e te colocar em um lugar. Tem um monte de gente esperando o bonde passar. Da minha geração, tenho mais amigo fodido no Rio do que aqui. Os daqui se viram, movimentam, colaboram uns com outros e trabalham, sabe? No Rio é um bando de fodido sem dinheiro pra pagar um cigarro, botando foto do Arpoador [risos]."

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Mas não que ela queira virar as costas para a cidade. Está, por exemplo, reformando uma casa que comprou em São Conrado para transformá-la em centro cultural.

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Ainda no Rio, aproximou-se em 2013 da "indústria do sonho" como técnica auxiliar do programa de calouros "The Voice", da Globo. "Vi ali uma galera sedenta de sucesso e acho... Não sei. Fiquei um pouco chocada com isso de procurar uma voz. Acho que o caminho artístico não se baseia só nisso. Eu não vi um conteúdo da voz, qual a mensagem que você quer transmitir. Por isso até que eu nem quis participar mais."

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Com uma camiseta da Minha Sampa, ONG que ela conheceu ao apoiar o movimento de ocupação das escolas, no ano passado, a cantora anda ligada no que acontece na cidade, menos "morna" do que quando ela foi embora. Elogia os movimentos coletivos que surgem, as pessoas na rua, "com menos medo, no Minhocão, na Paulista Aberta", ou "desenvolvendo os próprios empregos" e sendo "mais independentes".

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"Senta aqui, amor! Tá muito longe", diz, virando-se em direção à mesa de jantar. A produtora e artista plástica Lua Leça, com quem está casada desde 2013, prefere ficar lá, trabalhando no computador e no celular. "A Lua fica com vergonha..."

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E Gadú segue falando do "reencontro" com São Paulo, do trabalho como curadora da Virada Cultural deste ano e da série de shows que tem feito em CEUs (Centros Educacionais Unificados) e unidades do Sesc. "Para chegar a cada lugar, uma hora e meia, duas. Na zona leste, meus primos que moram superperto foram no show", diz ela, criada na Vila Mariana.

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"A indústria colocou o artista num lugar que eu [enfática] não gosto. E fui entender porque participei desse lugar, onde o artista tem que ser rico, ganhar dinheiro, ter um status luxuoso." No auge da exposição, "deu um nó na minha cabeça: por que as pessoas estão pagando R$ 200 para olhar para a minha cara? Acho que a cultura não pode ocupar um lugar de luxo".

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Agora, fica mais à vontade com os ingressos gratuitos nos CEUs e a preços populares nos Sescs (que também pagam a ela cachês menores). "Faço arte porque gosto e tem que ser acessível, para eu viver e pra quem está indo me assistir viver também. Se tiver que se endividar para me assistir, fodeu, velho [risos]."

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Entre as voltas pela periferia e as apresentações em casas de shows maiores Brasil afora, Gadú cuida do lar (a diarista vai só duas vezes por semana) e sai na rua sem disfarces. "Uso óculos quando tá sol, chapéu quando o cabelo tá feio. Igual qualquer outra pessoa", conta. Ela e Lua passeiam com a cachorrinha Amora pela vizinhança –mas evitam a noite, por medo que a buldogue seja roubada.

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"A gente vai fazer mercado lá na casa do caralho, que é mais barato [risos]. Quem que consegue fazer um mercado nos Jardins? Não tem condição não, brother. Tu vai com R$ 100 e volta com uma sacolinha com três bananas."

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Como alguém que vive de música, diz que, sim, a crise está afetando os artistas. "Antigamente em abril os cantores já tinham agenda para novembro. Agora tá diferente. E não é que as pessoas gostam menos da sua música. Mas a programação é muito grande e o dinheiro do fã é um só."

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Com planos de gravar um DVD, diz se preocupar mais "com o registro" do que com vendas. "Nada vende pra caralho mais, né? A Rihanna divulgou que foi disco de ouro no Brasil. E ela lançou o CD em janeiro, três meses antes. [Vendeu] 20 mil cópias. É doideira, né? E ela é 'a' Rihanna."

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Gadú desdobra a perna e sente o joelho, que dói desde que ela sofreu uma queda do palco, há três anos. "Coisa de velho! Olha os meus problemas! Meus amigos dizem que tem que pôr um 2 na frente [da minha idade]." Aos 29 anos, mais comedida no álcool e sem o vício em cigarro que a acompanhou durante 18 anos, diz que se sente "coroa", do tipo que "vai dando 11 da noite e bate um sooono".

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Numa inversão de papéis, é o avô paterno, Moacir, 93, quem a aconselha a ir cuidar do joelho. "Ele bebe cervejinha, dirige, salta de asa-delta. Tem desprendimento e acho que é por isso que é feliz. Me inspiro muito nele. Há uns anos, cheguei e falei: 'Vô, então, peguei umas meninas...'. E ele: 'Ai, graças a Deus, homem ninguém merece' [risos]". Seu Moacir, conta a neta, "é apaixonado" por Lua e escreve poemas para ela.


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