Folha de S. Paulo


Cão herói que ajuda polícia a desvendar crimes vai se aposentar

Esparramado pelo chão do Salão Nobre da Câmara Municipal de SP, Bruno olha com tédio as autoridades à sua frente. A fila para tirar fotos não tem fim –quando não é um jornalista esperando uma boa pose, algum fã se aproxima, querendo selfies.

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Orelhas caídas, olhos vermelhos e a boca aberta, escorrendo saliva. Quem o vê, não imagina que seja o primeiro cão da América Latina a realizar investigações policiais.

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Neste mês, também foi o primeiro cachorro homenageado pela Câmara de SP. O cão-detetive já encontrou dezenas de desaparecidos e até ajudou a desvendar crimes.

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Seu caso mais célebre é o da morte do americano David Sommer, em janeiro deste ano. "Foi a busca mais fácil", conta sua dona e treinadora, Ana Beatriz Albernaz, 38, à repórter Taís Hirata.

"Fomos chamados a um prostíbulo. O delegado pediu que farejasse o sétimo andar, onde mora a mulher com quem a vítima manteria relações. Eu disse: 'Não, vamos varrer andar por andar'".

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Não foi preciso. Ainda no térreo, Bruno saiu correndo pelo corredor. Bateu em uma porta, pedindo que fosse aberta. Em seguida, entrou no apartamento e subiu até o mezanino.

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"Ele ficou enlouquecido, pelo cheiro forte e pela adrenalina. Eu disse ao delegado: "Para mim, está muito claro. O assassinato aconteceu lá".

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Um dos suspeitos estava no local. Ao ouvir o veredito de Ana, confessou o crime.

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"Muito legal, né? Tudo em 15 minutos, nem suei! Nunca imaginei que uma coisa dessas fosse acontecer comigo."

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A cena, digna de série policial, contrasta com a vida pacata que Ana leva em Araçoiaba da Serra, a 15 km de Sorocaba. Sua casa fica em uma estrada de terra estreita e irregular. Do portão já se ouvem os latidos dos nove cães que moram com ela.

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A rotina deles começa às 7h. Correm pelo gramado e, quando se cansam, "tomam café da manhã", uma porção de ração. À tarde, o ritual se repete. "É um vidão", diz ela.

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Ana trabalha como orientadora educacional de uma escola bilíngue em Sorocaba. Aos domingos, treina com Bruno, fazendo simulações de buscas –em geral, amigos se dispõem a ficar escondidos em alguma mata até serem encontrados pelo cachorro.

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"Ele já chegou a andar por 12 horas seguidas", conta a treinadora. Em tom de especialista, explica as características anatômicas do bloodhound –a raça de Bruno, a mesma do Pluto e do Pateta, personagens da Disney.

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"As patas são longas e redondas, feitas para andar muitos quilômetros. Quando caminha, as orelhas raspam no chão, trazendo o odor ao focinho, que é enorme."
O cão exige cuidados especiais, como ração hipercalórica e proteção contra carrapatos e pulgas. Ela gasta, por mês, R$ 500 com Bruno.

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Há dois anos, ela trabalha com a unidade K9, que reúne 120 adestradores voluntários no país. O grupo é acionado por departamentos policiais e antissequestro, ou por particulares que buscam familiares desaparecidos. Ana não cobra pelas buscas, que são feitas de madrugada ou em fins de semana.

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Para chegar à homenagem na Câmara de São Paulo, ela viajou por duas horas em seu Jeep, comprado para carregar Bruno. "Antes eu tinha um Uno, mas a gente mal cabia nele."

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A chegada do cachorro no saguão da casa causou furor. Um grupo de alunos do ensino fundamental teve que ser contido. "Que cachorro fedido!", gritavam alguns. Engravatados observavam a cena com cara de que não estavam entendendo nada.

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Assessores do vereador Nelo Rodolfo (PMDB-SP), que convocou a cerimônia, enchiam o cão de mimos –ele comeu um pacote inteiro de biscoitos. "Desse jeito meu filho vai ter dor de barriga!", exclamava Ana.

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Os passos de Bruno eram acompanhados por uma comitiva de onze pessoas e duas redes de televisão. "Cadê meu filho?", perguntava a dona quando o perdia de vista.

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Um homem que conduzia Bruno limpava constantemente a boca do cão com uma toalhinha de mão. Não adiantava: ele continuou espalhando pequenas poças de saliva por todo o chão da casa. Na hora de pegar o elevador, o cachorro seguiu as equipes de filmagem, deixando a dona para trás. "A fama virou a cabeça dele", disse ela.

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Ana ganhou Bruno de presente e começou a treiná-lo aos quatro meses. O nome dele é uma referência ao cão do filme "Cinderela", da Disney. "É quem salva a princesa! Desde criança queria um cachorro chamado assim."

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Sua primeira missão oficial foi para as Forças Aéreas. Um piloto que havia caído de um planador durante treinamento estava desaparecido no meio de um canavial.

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"Quando chegamos, um PM que já trabalhava na busca há horas me disse: 'O que você acha que vai fazer com esse cachorro?'. E virou as costas", lembra. "No começo, ninguém acredita num cão molengo, com cara de bobo."

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Apesar de não encontrar o local exato do piloto, Bruno restringiu a área de busca, o que facilitou o trabalho.

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Em viagem à Virgina, nos Estados Unidos, no ano passado, a dona de Bruno contraiu a doença de Lyme, que não tem cura.

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"É uma bactéria transmitida pelo carrapato do veado, muito comum lá. Onde ela cai, é onde faz estrago. Pode ser no cérebro, no coração. Fiquei com reumatismo, mas posso ter outros problemas."

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A orientação médica de suspender os treinos foi ignorada. "Não tem como. Quando você começa a mexer com isso, vira uma necessidade. É paixão mesmo, vício."

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Ainda com febre, outro reflexo da doença, Ana participou da busca por uma esquizofrênica que havia fugido de casa. "Partimos da praça da Sé. Quando vimos, estávamos no meio da cracolândia."

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"Foi tenso. Muitos se escondiam, ou achavam que estávamos buscando drogas." No final, encontraram a desaparecida, que ia em direção à casa de sua mãe.

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Com um jeito calmo e risonho, ela leva a jornada dupla sem queixas. "Às vezes penso: trabalho tanto, não tenho sossego. Mas sou uma pessoa tão afortunada, por que não dividir isso? Descansar não vai resolver nada."

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A treinadora já planeja adotar mais um filhote da raça: aos oito anos, Bruno se aproxima da aposentadoria. Mas continua com disposição.

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Quando não encontra a pessoa procurada, o cão fica frustrado. "Ele põe a patinha em nós e olha para baixo, como quem pede desculpas", diz a treinadora.

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Empenhados em reanimar o cachorro-detetive, os adestradores fazem então uma operação de mentira. Assim Bruno sempre volta para casa com a sensação de dever cumprido.


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