Folha de S. Paulo


'Sou a favor de barulho na rua', diz escritora Ruth Rocha sobre o Brasil

Dias depois de festejar seu aniversário de 84 anos, em 2 de março, a escritora Ruth Rocha criou uma página no Facebook. Com ajuda da filha, Mariana, ela vai divulgar na internet seu outro motivo para comemorar: começaram os preparativos para a série de homenagens aos 50 anos de carreira da autora de livros infantis, que serão completados em 2017.

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Estão em produção três peças de teatro baseadas em seus livros, um documentário e uma exposição sobre sua carreira –em que figuram mais de 200 títulos publicados, traduções para 19 línguas, mais de 12 milhões de cópias vendidas e dezenas de prêmios, entre eles dois da Associação Paulista dos Críticos de Arte e três Jabuti.

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Alguns dos troféus ficam na prateleira que ocupa uma parede toda da sala de seu apartamento, nos Jardins. Em sua cadeira de balanço, Ruth conversa com a repórter Letícia Mori e revê sua trajetória profissional por meio do que sabe fazer melhor: contando histórias.

Cada objeto na sala, cada foto ou livro na prateleira tem uma anedota ou a lembrança de um enredo que ela escreveu ou gostaria de escrever.

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Ela organiza os livros nas estantes por temas: poesia, sociologia, literatura. Já não os lê mais em papel: adotou um e-book há alguns anos por causa de um problema na vista. "Dá pra aumentar a letra. Mas eu ainda compro [livros]. Não leio, mas compro. E às vezes minha irmã Hilda [Losch, 85], vem aqui e lê para mim", diz.

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"A tecnologia pode, sim, afastar algumas crianças da leitura. Mas quem gosta lê de qualquer jeito. Quando a pessoa pega o veneno... Eu tive um avô contador de histórias. Não sei onde é que ele via tanta história infantil, porque sabia [contos dos irmãos] Grimm, sabia [histórias de Hans Christian] Andersen, [contos do livro] 'Mil e Uma Noites', histórias folclóricas."

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"Minha mãe também lia para nós. Ela ia na livraria e enchia a casa. Quando descobriu o Monteiro Lobato, foi uma maravilha", diz a escritora, que tem o criador do "Sítio do Pica-Pau Amarelo" como uma de suas principais influências profissionais. "Meus livros sempre tiveram essa coisa de oralidade, de cotidiano, por causa do meu avô também."

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Enquanto mostra fotos antigas dos álbuns que guarda em casa, Ruth relembra o marido, Eduardo Rocha, que morreu em 2012. "Meu casamento durou tanto porque a gente tinha muito assunto. Minha filha diz que via a gente caminhando na praia e era assim: andava um pouquinho, parava, papeava. Andava, parava, papeava", conta, rindo. E mostra uma foto dos dois jovens. "Ele era um galã!"

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A escritora mora sozinha desde que ficou viúva, mas raramente está desacompanhada. Recebe visitas de amigos o tempo todo e adora organizar reuniões de família. "Festa é uma delícia, não é?", conta, enquanto mostra fotos de eventos aos quais ia nos anos 1960 e 1970. "E me dou muito bem com os parentes! Somos cinco irmãos, temos 11 descendentes e nunca brigamos!"

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As crianças da família, como os netos Pedro e Miguel, hoje com 17 e 20 anos, ouviam algumas das histórias que depois viraram livros. Mas só o marido de Ruth e a filha podiam criticar. "Eram os únicos que davam palpite e eu aceitava. Eles punham o dedo na ferida." A filha era pequena quando Ruth começou a escrever contos para crianças, na época em que trabalhava na revista "Recreio".

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"Minha editora vinha pedindo há tempos que eu colocasse no papel as histórias que eu contava para a minha filha. Eu falava que não sabia, que ia ver. Até que um dia ela me trancou em uma sala e disse que eu só ia sair de lá com um texto [risos]. Aí eu sentei e escrevi."

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"Sempre fiz o oposto de fábulas clássicas. Às vezes, leio algo e penso: 'Ah! Já sei o que vou escrever. O contrário disso [risos]. Uma vez eu tinha que escrever uma história de Natal e comprei um livro que tinha umas lendas norueguesas, com ilustrações de neve, floresta, fadas, espíritos. Aí eu fiz o oposto: falei de um menino que queria uma árvore de natal e não tinha. Então ele plantava uma muda em um terreno baldio."

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Ela explica: "O que eu tenho contra a fábula é que ela fecha o mundo. Você [escritor] dá a moral da história: é assim que é. E eu acho que a literatura pode abrir o mundo ao invés de fechar".

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"Eu queria formar gerações críticas de leitores. Não sei se consegui, mas o que eu aprendi na faculdade de sociologia e política fui pondo nas histórias: meu 'antipreconceito', a defesa das diferenças, até meu feminismo", diz ela. "Não faço essa divisão de literatura para menino e menina. Não tem cabimento. Eu era uma garota que gostava de fazer correria na rua, de coisas de menino, até das roupas. Fui uma das primeiras mulheres no Brasil que usaram calça comprida."

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Ruth começou a publicar no auge da ditadura militar. "Uma vez, quando eu visitava uma escola e lia 'O Reizinho Mandão', um menino perguntou: 'Esse rei aqui... ele é o presidente da República?'. Eu respondi que poderia ser, mas poderia também ser um pai mandão, um irmão. O menino insistiu: 'Mas ele é o presidente da República, não é? Você não tem medo da polícia?' [risos]. Eu disse: 'Tenho, muito! Morro de medo da polícia'."

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"Mas a gente que é escritor tem que escrever, não é? Não adianta, as coisas vêm aqui na garganta, tem que falar. Quando eu escrevia, sabia muito bem o que estava fazendo. Mas nunca fui pega."

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Ruth então localiza em um álbum de fotos a amiga Ana Maria Machado, que foi detida em 1969, e Ziraldo, que em 1968 foi levado para o Forte de Copacabana. Outro colega de profissão da mesma geração, João Carlos Marinho, foi detido nos anos 1970. Seus livros "Caneco de Prata" e "O Gênio do Crime" foram proibidos nas escolas públicas.

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A escritora comenta o atual momento político. "Tenho muito medo [de uma retomada conservadora no Brasil]. Sempre tem quem pensa, quem aceita a diversidade. E tem gente que é atrasada, burra, teimosa, que tem a cabeça fechada. Nossa esquerda não fez o que tinha que fazer, não correspondeu à nossa fé, e ficou desacreditada."

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"O PT tinha que ter assumido o papel que dizia que tinha -de ser honesto, de dizer a verdade. Mas não fez. Na hora que teve poder, degringolou", diz ela. "Tenho vontade de fazer um herói chamado Degringolou [risos]. Não é bonitinho?"

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Em 2010, o nome de Ruth foi incluído numa lista de apoio à candidatura de Dilma Rousseff. Ela fez questão de vir a público para desmentir. "Eu vim dos EUA só para votar no Lula há muitos anos. Mas eu não gosto mais do PT desde o mensalão. E por isso eu sou PSDB hoje."

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"Sou a favor de fazer barulho na rua, sim. De reclamar, de dizer que não estamos gostando." Mas é contra o impeachment. E se diz confiante. "Estamos passando uma fase de adolescência. Nossa democracia é jovem. As coisas vão mudar. Eu acho que o Brasil tem jeito, sim. Eu sou otimista."

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Otimismo que, segundo a autora, sempre a ajudou a escrever sobre temas polêmicos para crianças. "Tenho horror a ficar fazendo discurso que as crianças não gostem. Tento não fazer catástrofe, desespero. Coisa difícil pode, elas aguentam. O que não aguentam é tristeza, pessimismo. Criança precisa de esperança. Aliás, todos nós precisamos", diz ela, balançando-se em sua cadeira.


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