Folha de S. Paulo


Caio Fernando Abreu ficou pop só após morrer, dizem amigos dele em filme

"Quem já morreu fica num lugar quentinho, que a gente não vê, cuidando de quem ainda não morreu. E se você quiser agradar essa pessoa, é só fazer coisas de que ela gostava. Aí ela fica mais quentinha e cuida ainda melhor da gente", escreveu Caio Fernando Abreu, referindo-se a Clarice Lispector, em seu livro "As Frangas", de 1989.

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A frase foi escolhida por Candé Salles, diretor do documentário "Para Sempre Teu, Caio F.", para saudar um grupo de amigos do escritor. Morto em 1996 de Aids, o gaúcho deve ter se sentido quentinho nos papos e memórias dos convidados da sessão privê realizada em São Paulo, antes da première do filme hoje no Festival do Rio.

Paula Dip, roteirista do longa que retrata a vida e a obra do também jornalista e dramaturgo que virou pop nas redes sociais, abriu sua casa na Vila Madalena para um jantar em homenagem à memória de Caio. Naquele 12 de setembro, ele estaria completando 66 anos. Estavam lá os escritores Maria Adelaide Amaral e Marcelo Rubens Paiva e o cineasta Guilherme de Almeida Prado.

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"Somos todos amigos há 40 anos", diz Maria Adelaide, referindo-se também ao editor Pedro Paulo de Sena Madureira, à cantora Cida Moreira e à atriz Grace Gianoukas. "O filme honra o Caio no sentido humano e literário. Ele teria gostado do clima desta noite", disse a dramaturga à repórter Eliane Trindade.

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Todos tinham boas histórias para contar do aniversariante e de seus intensos 48 anos de vida. Grace, que dividiu casa com Caio quando chegou a São Paulo nos anos 1980, lembrava dos neologismos criados pelo conterrâneo. "Saia justa, mala", enumera ela, para se referir a constrangimento e gente chata, respectivamente.

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Fatos pitorescos e lembranças surgiam dentro e fora da tela no centro da sala, onde eram projetadas imagens desde a infância de Caio em Santiago (RS), passando pela temporada hippie na Europa à despedida da vida em uma praia no Sul. Várias convidados estão entre os 60 entrevistados por Salles. O documentário mescla ainda trechos da obra de Caio interpretados por atores como Thiago Lacerda e Cauã Reymond.

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"Caio é um clássico", elogia Pedro Paulo, para explicar o sucesso póstumo do autor de "Morangos Mofados" (1982), que virou "pop star das letras" nas redes sociais. "Ele é Van Gogh", resume Grace. "Vivia duro, já tinha estourado, mas o fenômeno de entendimento popular de sua obra foi acontecer depois."

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Com suas frases sobre a vida, a solidão, o amor e suas implicações, Caio tem páginas e páginas criadas na internet por fãs. A dimensão do do seu alcance pode ser medida no Google: são 6,2 milhões de resultados para "caio fernando abreu trechos". "Ele virou cult na internet, assim como Clarice Lispector, que era sua musa", diz Paula, autora do livro que serviu de guia para o documentário.

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A anfitriã emociona os convivas com suas palavras ao fim do filme: "Caio, você sempre soube traduzir o que sentíamos. Vão se passar muitos séculos e você vai continuar vivo no coração de quem chora de medo e de amor".

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A noite também foi regada a risadas. "Ele era um cara bonito, se eu fosse gay teria namorado o Caio", brinca Rubens Paiva, ao recordar noitadas turbinadas a uísque e outros aditivos.

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Surge um Caio pródigo em humor. Até no leito de morte, internado no Emílio Ribas, após ser diagnosticado com HIV. Recebia amigos com frases hilárias. "Fiz a Filadélfia", era uma delas, brincando com o filme de 1993, com Tom Hanks, sobre a luta de um soropositivo nos primórdios da doença. Grace conta ter sido recepcionada no hospital por uma performance de Caio, com trilha de As Frenéticas, adaptada à situação. "Por isso sou positiva", cantava ele, em vez de "sou vingativa".

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Leveza que contrasta com o autor que mergulhou nas profundezas em obras como "Os Dragões Não Conhecem o Paraíso". "Caio, hoje, seria definido como bipolar", diz Cida Moreira, que era vizinha dele nos Jardins. A cantora se recorda de uma frase do amigo soropositivo: "Eu que sempre fui suicida, hoje, que sei que vou morrer, amo a vida".

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Caio enfrentou a doença em público, assim como os cantores Cazuza e Renato Russo, também vítimas da Aids. Usou sua pena para desmitificar a doença. "Não me venham com olhar piedoso, detesto ser tratado como doente terminal, quero respeito para mim e para todos que vivem com o vírus HIV nesse país. Quero banalizar a Aids, falar muito dela."

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E assim o fez, despedindo-se da vida com dignidade e delicadeza. Como diz Marisa Orth no filme: "Caio era chique mesmo bêbado". A frase desperta risos gerais na turma reunida para brindar o nascimento do "escafandrista das palavras", numa fria noite de setembro.


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