Folha de S. Paulo


'Eu tava marcado', diz estudante Fábio Hideki ao relatar prisão após protesto

O estudante e funcionário da USP Fábio Harano, 27, deixou de ir a manifestações para passar dia e noite ao lado dos pais, o engenheiro aposentado Edson e a dona de casa Helena Harano. Ele ficou preso por 45 dias, acusado de participar de protestos violentos em SP. Depois que um laudo desmentiu que portasse explosivos, foi libertado pela Justiça. Ainda é investigado por associação criminosa e desobediência.

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Harano diz que apanhou da polícia e que se sentiu mais seguro na cela, com presos, do que com autoridades do Deic. Dormiu num colchão com cheiro de vômito, dividiu o espaço com dezenas de pessoas, fez dieta aconselhado por companheiros de cela. Antes de ser preso, estava lendo o quadrinho "Watchmen". Agora, quer terminar a série de Harry Potter. Abaixo, um resumo da conversa:

Marlene Bergamo/Folhapress
O estudante e funcionário da USP Fábio Harano com sua mãe durante entrevista
O estudante e funcionário da USP Fábio Harano com sua mãe durante entrevista

A PASSEATA
Eu tava bem apreensivo [na passeata da av. Paulista, em junho, em que terminou preso]. Não nego: meu coração deu uma acelerada quando vi a quantidade de policiais.

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Eles ficavam numa disputa velada, com os cavalos tentando fazer com que andássemos rápido. Quem está atrás tenta segurar para não deixar a gente ser simplesmente conduzido. Mas não teve porrada, xingamento, ninguém quebrou nada. No Trianon, o pessoal dispersou.

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Eu estava na catraca do metrô Consolação. Ouvi o som de um tiro. Coloquei de volta o meu capacete, as luvas, o EPI, equipamento de proteção individual, como se diz na segurança do trabalho: máscara, vinagre, pano, roupa grossa, calçado bom pra correr. Equipamento de quem não quer apanhar. Pensei: "Vou lá para tirar foto, filmar". A gente tirar fotos das identificações dos policiais, das placas dos veículos.

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Na escada, um sujeito à paisana chama: "Ei, você". E começa a me puxar. Vêm outros, "polícia, polícia civil". Minha reação foi pedir para pessoas com celular: "Filma, filma". Pensei: "Tô preso".

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Eu tiro as coisas da mochila ali, sem medo. Sempre me falam: "Você leva a casa nela". Aprendi com minha mãe. Eram duas camisetas, duas cuecas, meia, para o caso de eu ter que dormir fora.
Helena - Escova de dente, um monte de sacola plástica.
Fábio - Na saída do metrô, fiz um gesto de resistência, e os policiais: "Para com isso, você agora é o José Genoino [que, quando preso, em 2013, ergueu o braço]?"

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Entrei no carro da PM. E eles fazem zigue-zague para a pessoa ficar tonta, bater a cabeça. Me apoiei. "Querem que eu fique desesperado, não vou dar esse gostinho."

NO DEIC
No Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), me algemaram. Me levaram para uma sala em que já estava o Rafael [Lusvarghi, também preso na manifestação], machucado, algemado. "Seu vagabundo, baderneiro, japonês, não tem nem vergonha, não?" Como se fosse desonra um japonês participar de manifestação. Eu estava no lugar que hoje chamo de cova dos leões.
Eu perguntei para o Rafael: "Cara, qual é o seu nome?". Aí um policial, que eu sei reconhecer, me deu um soco, joelhada e chute na barriga. Vi estrelas. Ele me jogou no chão: "Aqui é o Deic, porra! Quem manda aqui é nóis" [a polícia nega as agressões]. Tiraram fotos minhas com seus celulares, como se tivessem um álbum de bandidos. Reviraram minha mochila.

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Eu sempre carrego telefones de advogados. Eles riram, "nossa, lista de advogados, é bandido mesmo". Tinha o do deputado Paulo Teixeira, do PT. E eles: "Tinha que ser PT mesmo". Eu carrego o cartão dele porque em uma marcha da maconha, em 2009, eu ia ser levado para a delegacia. Ele conversou [com policiais] e não me levaram. Como ele já me salvou uma vez, né?

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Chegou o diretor do Deic e cochichou: "Você tá fodido." Depois me ofereceu Coca-Cola, tentou tirar informações, saber se eu era black bloc.

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Quando eu estava prestando depoimento, um policial entrou e me mostrou o tubo [apontado como explosivo]. Plantaram a "bomba" nas minhas coisas para eu ser acusado de crime inafiançável. Mas em nenhum momento entrei em pânico. Conheço gente que chorou em situações como essa. Eu, não.
Edson Harano - Ele já tava nessa vida [de manifestações] há muito tempo, né?
Fábio - Não é assim. Quando percebe que está no Deic, muita gente desaba. Só chorei uma vez, no presídio de Tremembé. Um colega de cela tava chateado porque o pai não foi visitá-lo na cadeia.
Helena - Chorou! Chorou! Ele tava sensibilizado. É que o rapaz era reincidente. E o pai ficou muito chateado.
Fábio - Não sei se é isso.
Helena - Ele supõe.
Fábio - Eu não. Você é que tá supondo! E eu só não fico com vontade de chorar agora porque, ainda bem, na semana seguinte, o pai dele foi.

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Dormi na cela do Deic. Todos lá tinham assaltado banco. Perguntaram: "E você tá aqui por quê?". Manifestação e tal. E eles: "Nossa, mas é cada uma! Putz grila". Me senti seguro ali. Aquele lugar eu não chamo de cova dos leões!

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O lugar é muito sujo. Tem o boi, um buraco no chão [privada]. Uma mangueira é usada como descarga, chuveiro, tudo. Subi numa pedra, que é o espaço para deitar, sem colchão. Tirei o tênis, coloquei os pés num saco plástico, me encolhi todo e dormi.

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[Os pais dizem que, embora soubessem que, como ativista, ele corria o risco de ser preso, não imaginavam que o caso tomaria tamanha proporção. Harano já havia sido detido em 2011, em greve da USP. Pagou fiança e foi solto.]
Helena - Ele já virou freguês [risos].
Edson - O pior passou. A vida continua. Não vamos ficar nos martirizando.
Helena - Ele fez essa opção [de ser ativista]. Há muito tempo ele está nessa vida. A gente não interfere.
Fábio - Alguém tem que fazer algo, afinal. Eu sou um ativista, um militante independente. Sou do sindicato da USP, mas não sou filiado a corrente política nem sou membro formal de movimento social. Sou um cara aí que quer melhorar as coisas.

NO CDP DE PINHEIROS
Fui transferido para lá. Me avisaram: "Aqui você não tem alternativa. Vão te chamar de ladrão e você vai falar: "Não, senhor. Sim, senhor. Com licença, senhor". Cortaram o meu cabelo. Não tive opção.

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Fiquei na sala de inclusão, bem suja. Eram 12 pessoas quando cheguei. No fim do dia, já eram uns 30. Tinha um espanhol, muitos da América Latina, um egípcio. Estavam ali por causa da Lei Maria da Penha, tentativa de estupro, embriaguez no volante. Existe aquele temor: "Cadeia! Será que [o preso] vai ser estuprado? Vão extorquir?" Vi que não. Porque lá tá todo mundo ferrado, igualado, no mesmo barco.

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Não tem espaço e todo mundo em pé. Quem dorme na praia, que é a gíria para chão, tem direito ao colchão, mas dormem em três.

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A refeição vem na marmita, sem talher. Um suco em pó é misturado numa garrafa pet de dois litros que vai passando, todo mundo bebe no gargalo. À noite, um dos presos leu um trecho da Bíblia, todos cantaram. Eu não tenho religião, mas cantei com força. Pensei: "Muita gente quer que eu fraqueje. Mas tô tranquilo".

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Senti uma dor abdominal, fui para a enfermaria. Um cara ao lado tava com abstinência alcoólica. O meu colchão tava com um cheiro estranho. Alguém tinha vomitado lá. Foi o pior momento.

TREMEMBÉ
No dia seguinte fui transferido para o presídio de Tremembé. Os guardas não são tão grossos porque lá tem muitos policiais presos, pessoas conhecidas, com contatos, capital social. Te entregam um kit com colchão, coberta, uma escova de dentes, caneca, colher e bandeja.

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Eu me exercitava, lia. Sozinho, o tempo não passa! No dia 30, chegou um preso. Era o meu aniversário. Deixei quieto, não comentei. Num outro dia, minha avó e meu irmão trouxeram roupas e gibis dos Cavaleiros do Zodíaco. Li não sei quantas vezes.

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Depois fui para uma cela com três pessoas. Pessoal gente boa, tranquilo. Eles faziam dieta. Eu procurei seguir. Não vou mais comer carboidrato à noite! Eu aparecia na TV e o pessoal gritava: "Olha o japonês na Globo".

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Do jeito que a armação tava [referindo-se à sua prisão], pensei: "Ho, ho", como Papai Noel: vou passar o Natal aqui. É preferível ser pessimista do que otimista e quebrar a cara. O José Saramago dizia: "Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo".

Reprodução
Bilhete com 'salve' a presos que Fábio conheceu na prisão
Bilhete com 'salve' a presos que Fábio conheceu na prisão

ESQUERDA CAVIAR
Além de ser algo que não cabe ali [referindo-se ao despacho em que o juiz diz que Harano é da "esquerda caviar"], é a ideia de que, de classe média para cima, não pode ser de esquerda. E ele falou que usamos tênis Nike.
Helena - Olha o tênis que ele usa!
Fábio - É Asics. Não pago mais de R$ 200 num tênis.
Edson - Ele é contra smartphone, não quer ter de jeito nenhum.
Fábio - Se me conhecesse, ele [juiz] poderia me chamar de esquerda muquirana.

PRESO POLÍTICO
Todo preso é preso político porque toda prisão decorre de uma decisão política, de se criminalizar uma conduta. Mas, no meu caso, foi descaradamente persecutório. Inclusive um policial me falou: "Você me fodeu, japonês. Eu queria ver o jogo do Brasil e recebi ordens de te seguir a tarde toda e de te prender depois". Eu tava marcado.

VIDA DE ATIVISTA
Desde 2013, fui a mais de 20 passeatas. Pelo passe livre, pela legalização da maconha, apoiando a galera do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), contra roubalheiras e injustiças da Copa.

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De política eu comecei a gostar com 13 anos.
Helena - [suspira] Ai, ai.
Fábio - Eu queria inclusive mandar um "salve" para o professor Adelardo, meu professor de história na 8ª série.
Helena - Com 17 anos, ele passou na Poli [Escola Politécnica da USP]. Não é fácil.
Fábio - Em 2007, passei a me envolver com ativismo, movimento estudantil. Mudei para ciências sociais. Mas não terminei. Em 2012, fiz vestibular para jornalismo, na ECA (Escola de Comunicação e Artes). E estou lá.

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Se eu tiver que resumir, eu defendo democracia de base e direitos humanos. Sou um cara internacionalista, contra essa limitação do Estado nação. Eu não acho que os black bloc sejam um movimento. Se todo mundo que joga lixo no chão for chamado de sujismundo, vamos ter vários sujismundos. Não significa que exista um partido dos sujismundos. Não faço o que eles fazem, isso mostra que não concordo com eles.

Marlene Bergamo/Folhapress
O engenheiro aposentado Edson Harano, pai de Fábio Hideki
O engenheiro aposentado Edson Harano, pai de Fábio Hideki

Não vou dizer em quem voto para não fazer propaganda de nenhum lado.
Helena - Melhor não. Ele ta numa situação delicada.
Fábio - Mas o PSDB é o pior partido do Brasil, sem dúvida.

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Estou lendo "Introdução à Economia", de vários autores, e o 5° livro do Harry Potter. Faz dez anos que tô enrolando para terminar a série. E quadrinhos eu gosto. Tava relendo "Watchmen" antes de ser preso.

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Agora eu quero mesmo é me livrar desse processo estapafúrdio e tocar a vida. Se eu vou a passeatas? [olha para o pai antes de responder] Vamos ver, né? Tenho que conversar direito com o advogado. Mas tô de molho.

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Não vou dizer que, na prisão, todo mundo gosta de todo mundo, mas quero reforçar que ninguém me tratou mal. Medo eu tive lá na cova dos leões [com os policiais]. Aliás, não sei se você tem como fazer isso. Mas o pessoal de Tremembé pediu que, se eu desse entrevista, mandasse um "salve" para eles. Então eu quero mandar um "salve" para o Nicolas, o Diego, o Arroz... Melhor escrever.

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Fábio Harano pega uma folha e uma caneta.
A mãe dele sorri e suspira. "Ai, ai. Ai, meu Deus."


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