Folha de S. Paulo


Letícia Sabatella explora seus talentos de musicista ao lado do marido

Ao piano, Fernando Alves Pinto dá o ritmo para Letícia Sabatella. A atriz canta uma de suas composições, durante ensaio na sala da casa dos pais dele, em São Paulo, na tarde da última terça-feira.

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Ela desfia sua voz afinadíssima, enquanto o marido toca no antigo Steinway "Silent Kindness", canção de autoria de Letícia, cantada também por Palmira Valente, sua personagem em "Sangue Bom", numa das cenas finais da novela da Globo. "As pessoas ficam surpresas: 'Nossa, a música é sua?'", diz a atriz à repórter Eliane Trindade.

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Seus múltiplos talentos não espantam diante de uma sólida formação musical. Letícia foi "descoberta" para a TV em "O Barbeiro de Sevilha", no teatro Guaíra, em Curitiba. "Foi lá que me formei. Queria ser cantora de ópera. Fiz balé, canto, dança."

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Na capital paranaense, onde viveu dos quatro aos 20 anos, a atriz, hoje com 42, teve duas bandas: a Tuba Intimista e o Abominável Sebastião das Neves. Agora, ataca de Caravana Tonteria, trupe com a qual fará seu debute paulistano na Virada Cultural, no próximo sábado, às 23h, na Galeria Olido.

Ao lado do marido —que toca ainda violão, trompete e serrote, além de cantar e atuar—, Letícia se apresenta com o pianista Paulo Braga, o violinista Hique Gomez, do "Tangos & Tragédias", o flautista Gabriel Schwartz e o contrabaixista Zeli Silva. "Somos uma trupe meio 'Commedia dell'Arte'", define a atriz, referindo-se à forma popular de teatro. "Um monte de saltimbancos, coloridos, circenses, maltrapilhos."

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Com a palavra o gaúcho Hique Gomez, em voo solo após a morte do companheiro Nico Nicolaiewsky: "Esqueça o chavão: atriz da Globo grava CD. Não se trata disso! Ela adora experimentações, é afinadérrima e faz sozinha um coral de várias vozes sobrepostas".

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Já a Letícia militante, que apoiou a luta contra a transposição do rio São Francisco, anda em segundo plano. "Estou num momento de criação muito intenso e de cuidar da família. Dei uma focada." Não levanta a voz sobre o mensalão e a prisão de José Dirceu e José Genoino. "Confesso não ter opinião 100% formada. Estou, como a maioria, observando o que há de espetáculo nessas prisões."

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Mede palavras: "Como todos, fiquei chocada com os escândalos dos mensalões [do PT, do PSDB, do DEM]. Não é algo defensável. Mas temo não ver na prisão pessoas que há muito roubam, mandam matar, escravizam e estão no Congresso, soltas."

Fatos que a fazem questionar a credibilidade do julgamento. "Tem dois pesos e duas medidas", critica. "Não acho o Joaquim Barbosa [presidente do STF] um grande herói. Parei de acreditar em 'salvador da pátria' faz tempo."

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Sobre o governo Dilma é econômica. "É a continuidade do que foi o governo Lula. Como sou ligada aos índios e ribeirinhos, me preocupo com uma política energética que não empodera o cidadão."

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Está de olho também na aliança de Marina Silva com Eduardo Campos (PSB). "Eu me preocupo com as coligações que ela vem fazendo. É uma amiga, de quem gosto, mas também estou observando." Observando e cantando.

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Em uma hora e meia de show da Caravana Tonteria, a equação pende mais para a música (80%) do que para a encenação (20%), calcula Letícia, que também é produtora do espetáculo, com o qual quer rodar o país. O nome é emprestado do tango "Tonteria". "É a minha única composição do gênero", explica ela, adepta de uma salada de ritmos. "Passamos por sons latinos, jazz, rock, música grega e do Leste Europeu."

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Quase todas as canções são de autoria da própria Letícia, à exceção de números musicais, como "What a Wonderful World" (imortalizada na voz de Louis Armstrong) e "Hello, Dolly", de Tom Waits, em versão de Hique Gomez.

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Letícia dá uma palhinha no sofá, apoiada no ombro do marido. Nando incorpora Gallo Cartel, personagem surgido em uma das "tonterias" de um ensaio no mesmo cenário. Ele toca ao violão e canta uma versão divertida de "Vapor Barato", em espanhol: "Oh, mia honey bebe", brinca com o refrão "Oh! minha honey baby", entoado por Gal Costa na canção original.

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Pausa para um almoço em família e para cantar parabéns para Fernando, que completava 45 anos. A fina sintonia do casal está em todos os detalhes. Eles brincam com o labrador Pingo e se entendem com olhares. Estão juntos há três anos. "A música foi nosso cupido. Nos encontramos em um sarau na casa de uma amiga e depois vieram outros e não nos separamos mais", diz ele. "Letícia tem uma maneira linda e solta de se expressar com a voz."

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Casaram-se em dezembro de 2013. O embrião da caravana já estava lá. "Na véspera, eu e o Nando fomos para um estúdio com o Paulo e o Zeli pra fazer um jazz nupcial. Gravamos algumas músicas minhas para a cerimônia", recorda-se a noiva.

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A marcha tradicional foi tocada para a entrada teatral de um dos padrinhos, Ismael Aprakt, índio Craô que é o "palhaço sagrado" de sua aldeia no Tocantins. "Ele entrou de véu, salto e enrolado em tule, brincando com os convidados", relata Letícia, sobre o amigo que é personagem principal de um documentário dirigido por ela.

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A atriz se emociona ao falar da linda cerimônia celebrada por outro amigo, o dominicano Frei Betto. "Foi o casamento da minha vida. Com a consciência de um casamento", resume. Ela teve um longo relacionamento com o ator Ângelo Antônio, pai de sua filha, Clara, 21, que está de mudança para Londres.

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Direciona o papo para o processo criativo de compor. "Estou completamente distraída ou no meio da rua e vem uma música na cabeça. Muitas vezes, gravo uma ideia musical no gravador." É o que aconteceu com a composição que fez para a peça "Trágica.3", em cartaz em SP, na qual faz o papel de Antígona.

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Ela toca a canção ao piano, mas diz que "brinca" com o instrumento. "Eu tenho um em casa, mas nunca estudei. Uso pra me sensibilizar. É onde mergulho no não saber, na experimentação." Para ela, a música é intuitiva e afetiva. Do canto incessante da casa da avó, em Itajubá (MG), às inspiradoras noitadas musicais em saraus de amigos e parceiros em Curitiba.


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