Folha de S. Paulo


A esclerose brasileira

Esclerose é termo que se refere ao enrijecimento anômalo de alguma estrutura orgânica. Do fígado às artérias, dos músculos aos rins, do desemprego ao investimento.

Em 1986, os economistas Olivier Blanchard e Larry Summers cunharam o termo "euroesclerose" para descrever o desemprego persistente na Europa, que parecia jamais retornar aos níveis que precediam os ciclos recessivos. Uma releitura modernizada do termo sugere que a economia brasileira está esclerosada, a estrutura enrijecida é o investimento.

O FMI acaba de divulgar o seu mais recente World Economic Outlook, relatório produzido duas vezes ao ano que traz, além de projeções sobre a economia mundial, estudos sobre temas específicos que estão em voga no debate global. O capítulo 3 do relatório destrincha a evolução do PIB potencial das economias avançadas e emergentes, tema que abordei em artigo recente sobre o Brasil.

O PIB potencial, para os leitores que não estão habituados com o termo, é uma construção teórica que indica o quanto uma economia é capaz de crescer quando emprega e utiliza, de modo eficiente, todos os recursos de que dispõe: da tecnologia à força de trabalho, do estoque de capital produtivo ao volume de capital humano.

O debate sobre o PIB potencial voltou a dominar o cenário internacional desde que alguns economistas de renome propuseram que o mundo pós-crise estaria passando por processo nefasto, a "estagnação secular". A ideia não é nova, surgiu em 1938. Na versão repaginada, a estagnação secular significa a incapacidade de uma economia alcançar o pleno emprego, ou retomar o PIB potencial, na ausência de taxas de juros reais negativas.

Ou seja, para que haja estagnação secular, é preciso que o crescimento esteja anêmico, o investimento seja visto como "insuficiente", a inflação esteja baixa ou próxima dos limiares deflacionários –isto é, da queda generalizada de preços– e que os juros reais estejam em território negativo.

Parece discussão excessivamente técnica? Vejamos por outro prisma: a ideia de estagnação secular é compatível com a noção de que o investimento é sistematicamente insuficiente para resgatar o crescimento potencial de uma economia. Vista desse modo, a tese parece se adequar ao Brasil, exceto pelo fato singelo de que nossas taxas de juros reais estão entre as maiores do mundo e a nossa inflação bem, a nossa inflação.

Se inflação e juros não se encaixam na tese de estagnação secular, o crescimento baixo e o PIB potencial em aparente declínio sugerem que há algo bastante errado com a economia brasileira, algo que transcende as estripulias macroeconômicas do primeiro mandato da presidente Dilma, algo que o ajuste fiscal, por si, não é capaz de consertar por mais que admiremos o ministro Levy. Os indícios são que o investimento brasileiro esteja esclerosado, enrijecido, tal qual o desemprego europeu nas últimas décadas.

De acordo com os dados mais recentes das contas nacionais após a revisão feita pelo IBGE, a taxa de investimento brasileira permaneceu ao redor de 19,5% do PIB ao longo dos últimos 14 anos. Recessões vieram, recessões se foram e o investimento permaneceu encruado.

Curiosamente, quando se analisa o comportamento do preço do investimento em relação ao preço dos demais bens e serviços da economia brasileira, percebe-se que tal preço está em queda desde 2009. Ou seja, há alguns anos, o investimento tem estado relativamente mais barato do que os demais componentes do PIB, sem que isso tenha gerado nenhum incentivo para que as empresas invistam mais.

Isso parece contrariar a lógica tradicional de demanda e oferta: quando o preço do investimento cai (quando o custo de máquinas, equipamentos, galpões recua), a demanda deveria subir, restaurando novo equilíbrio em que a taxa de investimento é maior. Mas a demanda por investimento no Brasil parece inerte.

Como resolver a esclerose brasileira? Como evitar que a estagnação secular à moda tropical se entranhe inexoravelmente? A partir de hoje, esse é um dos temas que pretendo abordar semanalmente neste espaço.


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