Folha de S. Paulo


Mãe, você me perdoa por eu não ter conseguido salvá-la daquele inferno?

Jaaaiiro Souza/Dissonia

Hoje você teria 90 anos. O maior sofrimento da minha vida foi quando você descobriu que tinha câncer aos 60 anos e morreu dois anos depois. Fui testemunha da sua infelicidade durante todo o casamento, especialmente quando soube que meu pai tinha uma amante. Não me lembro de tê-la visto rir ou mesmo sorrir uma única vez.

Será que você sabia que não estava sozinha? Será que você sabia que muitas mulheres sofreram (e ainda sofrem) a mesma violência física, verbal e psicológica?

Não sei como você aguentou um mundo tão violento. Não lembro de um só dia da minha infância e adolescência sem brigas, gritos e surras. Para não apanhar, aprendi a ser invisível, ficar calada e observar atentamente tudo ao meu redor para antecipar o perigo.

Até os dez anos de idade só conseguia dormir quando me deitava ao seu lado e você me abraçava. Até hoje sofro de insônia e anseio pelo seu abraço. O tema dos meus pesadelos é sempre o mesmo: sua doença, sofrimento e morte.

Consegui realizar um dos seus sonhos: estudar e sair, aos 16 anos, da casa onde assistia, apavorada, a verdadeiras sessões de tortura: quando meu pai bêbado espancava os filhos e gritava com você.

Você sabe que essa dramática história familiar produziu dois resultados: lutei muito para ser independente economicamente e nunca tolerei a mínima violência. Piadinhas machistas e xingamentos que podem parecer insignificantes para os outros, para mim são formas de violência. Como não consigo brigar e gritar, imediatamente me afasto de pessoas tóxicas e violentas.

Choro todas as vezes que penso em você. Queria ainda tê-la ao meu lado. Queria muito que você tivesse estudado e sido independente como tanto desejava. Queria muito que você tivesse sido feliz. Queria simplesmente abraçá-la e dizer que ainda sou a mesma menininha frágil, insegura e medrosa que precisa tanto do seu abraço.

Queria que você soubesse que tudo o que sou hoje devo ao seu amor, carinho e cuidado. Sua vida tão infeliz me mostrou o que eu não queria na minha própria vida. Muito obrigada por ter me ensinado a construir uma vida diferente da sua.

Você me perdoa por eu não ter tido a força necessária para protegê-la e por não ter conseguido salvá-la daquele inferno?


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