Folha de S. Paulo


Normalidade

Em 1992, ano do impeachment de Fernando Collor, eu estava prestando serviço militar obrigatório no CPOR de Porto Alegre. Falava-se pouco de política no quartel, não porque houvesse censura ou medo de represálias ideológicas. É que tínhamos coisas mais urgentes a tratar –a qualidade da faxina, a técnica do passo certo na Ordem Unida– se quiséssemos evitar erros que nos botassem de castigo no fim de semana.

Não é incomum a relação entre o conceito de normalidade, ou aquilo que reproduzimos bovinamente para proteger o conforto material e emocional do dia a dia, e uma forma de alienação totalitária. Em exemplos históricos extremos, foi o que fizeram os colaboracionistas franceses durante a Segunda Guerra ou quem fechou os olhos para a cultura de medo e delação na antiga Alemanha Oriental.

Mas claro que estamos falando de outra coisa no Brasil de 2015. Tudo é um filme velho e algo farsesco para quem virou adulto nos anos 1980/90: dos personagens (Renan Calheiros, Eduardo Cunha) à narrativa escatológica imediata (recessão, desemprego), das medidas legislativas que geram uma esperança um tanto vã (a Constituinte em 1988, a reforma política agora) às reações diante da corrupção (o udenismo da direita atual era a linguagem petista até chegar ao poder).

Para quem viveu a chanchada institucional entre o ocaso da ditadura e o Plano Real, os parâmetros contemporâneos não chegam a assustar. Enquanto Dilma fez sua ode à mandioca, Itamar Franco instituiu a "cultura da broa de milho". Enquanto o governo atual teve coragem de se aconselhar com Aloísio Mercadante, Collor recebia o tarólogo conhecido como Professor Namur –que previu a eleição do então presidente e, segundo a revista "Elle", o teria ajudado nos planos para a criação de uma nova moeda (o "Ouro", cujas notas seriam verde e amarelas).

Durante o período Sarney, a inflação superou os 80% ao mês. Sob FHC, houve apagão elétrico. Lembro de assinar cheques para comprar pão e leite, de ler matérias apocalípticas sobre o consumo da máquina de lavar. Nos 12 anos de PT, vi o partido se aliar a cada um dos adversários que demonizava. O desperdício, a incompetência e a roubalheira não são novidade desde a chegada dos portugueses.

O momento que vivemos é grave, num clima que lembra o fim de feira do general Figueiredo, mas as coisas podem ser postas na devida perspectiva. Não é uma tragédia que tenha ficado caro comprar Single Malt no exterior. Será uma tragédia se os ganhos sociais dos últimos anos forem anulados. O problema fiscal tem soluções possíveis a longo prazo. O problema educacional –que traz em sua esteira um problema cultural e de desenvolvimento– não dá mostra de ter.

Nesse sentido, me preocupa menos que as gerações pós-real vivam sua primeira crise de verdade do que continuem sendo –como todas pós-1964– gerações que não tiveram escola pública decente como alternativa de ensino básico e médio. A mediocridade de Lula e Dilma na área é mais danosa para o futuro do que as pedaladas contábeis e a máfia que tomou conta do Estado via Petrobras.

Quando a ausência é de valores, não existe boa vontade que resolva. É mais fácil achar esperança num "paper" escrito por economistas, inclusive os pagos por grandes bancos para palpitar sobre o mercado onde atuam, do que numa análise sobre o nível do debate público no país. Tanto no aspecto cognitivo, em que argumentos são distorcidos por uma alarmante incapacidade de leitura, quanto no moral.

Diante desse quadro aí sim catastrófico, o otimismo se reduz a um ramo das ações práticas. Continuar se dedicando ao trabalho, ao amor e à louça suja na pia é o que temos ao alcance por ora, independentemente de nossa participação na esfera política.

A manutenção do cotidiano pode ser alienação totalitária, mas também o bom e velho bom senso. Enquanto o país do futuro recua –nos últimos 30 anos, ele vem fazendo isso depois de ciclos de euforia–, tratemos de tocar a vida. Ou, nas palavras do Professor Namur, que acertou suas previsões (outra vez) num tuíte de 2013: "Botar os pés no chão é a melhor maneira de segurar a cabeça no céu".


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