Folha de S. Paulo


Viagens invisíveis

Muito antes do Instagram e das poses de Francisco Cuoco na piscina de "Caras", com um pouquinho mais de ênfase que a dos pensadores dedicados ao tema nas últimas décadas, o escritor e dramaturgo Thomas Bernhard definiu a fotografia como "mania sórdida", uma "doença que acometeu toda a humanidade" e, em suma, "a maior desgraça do século 20".

Em certas circunstâncias, é difícil não ver na sátira do trecho –tirado do romance "Extinção", de 1986–algo de profético. Nas atuais viagens, por exemplo: se há algo que não está em falta no século 21, ao menos quando falamos do turismo de classe média/alta no Ocidente, são imagens de metrópoles cada vez mais parecidas nos costumes, no comércio, nas atrações culturais.

A questão é se esse esgotamento, perceptível no retrato de alguém em frente à Torre Eiffel ou naquele restaurantezinho simpático de Buenos Aires, estende-se à experiência. Ou seja, se a facilidade contemporânea de tirar e publicar instantâneos do gênero não tornou (ainda mais) uniforme o que eles narram –seus personagens num lugar supostamente estranho, fazendo coisas que supostamente não costumam fazer.

Nos últimos anos, tenho viajado mais do que gostaria. Às vezes é bom, em outras é um pesadelo. Às vezes aproveito, em outras chafurdo em neurose no quarto do hotel. Em todas as ocasiões, planejo (e jamais consigo) voltar sem fotos ou filmes. Parece um desperdício entediado de oportunidades, mas em certo aspecto é o contrário disso.

Num trecho de "As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino, o imperador mongol Kublai Khan pergunta por que Marco Polo nunca fala de Veneza, lugar onde nasceu. O explorador responde que fazer o relato seria "cancelar as margens da memória", limitar a evocação da paisagem de sua infância às palavras que a descrevem.

O mesmo talvez dê para dizer das imagens. Quando são produtos privados, que não buscam a autonomia simbólica da criação artística ou a relevância documental do jornalismo, elas nos obrigam a ver e interpretar apenas o que está dentro de seus limites. No recorte do passado trazido por cores, enquadramento e assunto escolhidos, a matriz é mais pobre que a das sensações amplas e abstratas presentes em qualquer lembrança.

Não só pelo motivo óbvio de que as lentes não reproduzem o cheiro da grama de um parque, a temperatura que fazia quando conhecemos por acaso uma pessoa que mudou nossa vida.

Também porque lembranças trabalham com a espontaneidade possível dos acontecimentos, mesmo num mundo afeito à encenação como o atual, enquanto a fotografia turística é puro cálculo: a decisão de levantar o celular ou a câmera, a consciência ao olhar (ou não) para ela, que Bernhard chama de "instante grotesco ou instante cômico" estrelado pela "caricatura perversa" de "marionetes ridículas".

Se fotos são uma das faces objetivas de uma biografia, a versão externa e imutável do que escolhemos dizer sobre nós mesmos para quem as vê, a recusa a esse registro tem desdobramentos que vão além da esfera individual.

Permitir que a vida ocorra na precariedade do momento é uma contribuição, em escala ínfima que seja, para diminuir a quantidade opressiva de clichês narcísicos ao redor. Não afetar exclusividade por algo que será compartilhado por centenas ou milhares. Não buscar aplausos por postar um sorriso na praia. Não alegar sofisticação porque compro picolé no mercadinho onde o dono não fala minha língua.

Até quando o acaso nos distancia de um imaginário tão gasto pode ser interessante evitar os créditos do relato. Além das glórias hedonistas, viagens são chances de submergir em estados de espírito que hoje são quase tabus, como a solidão, a decepção, a angústia e o medo. É tentador transformar tais elementos em preliminares de uma fábula redentora, contada por quem superou obstáculos para crescer espiritualmente e, já com as malas desfeitas, tornou-se mais charmoso e cheio de si.

Mas se deixar levar pelo fracasso puro, o deslocamento sem enfeites cuja única legenda é "por que mesmo eu preciso estar aqui?", pode ser igualmente rico. E bem mais original. Fotos servem para muita coisa. Não para captar a intensidade dessa experiência.


Endereço da página: