Folha de S. Paulo


Debates atuais: roteiro básico

- A ATACA B de modo agressivo. B responde de modo igualmente agressivo. A acusa B de baixar o nível da discussão.

- Notícia sugere roubalheira em governo do partido X. Partido Y repercute-a exaustivamente. Quando os mesmos jornais falam da roubalheira em governos de Y, seus defensores creditam tudo a informações plantadas por X ou interesses dos grupos de mídia.

- Figurão do meio cinematográfico ou teatral perde cargo numa secretaria. Dá entrevista denunciando dirigismo/patrulha ideológica. Figurão ligado à secretaria rebate denunciando as velhas panelas do setor. Um abaixo-assinado é feito. Notas saem em colunas sociais. Em uma coisa todos concordam: faltam verbas.

- Acontece alguma coisa estranha envolvendo Machado de Assis: editora recusa originais de um texto seu enviado com pseudônimo, celebridade diz que o considera chato ou cita frase de Brás Cubas fora de contexto. Cai uma tempestade na cabeça do(s) réu(s). Índices de leitura no país continuam ridículos.

- Artista faz instalação usando fezes, absorventes ou imagens de Cristo numa orgia. Pessoas que não entendem de arte ficam escandalizadas. Pessoas que não entendem de arte defendem a coragem do artista. Pessoas em geral, entendendo ou não de arte, sentem certa preguiça.

- Vídeo de rock/pop no YouTube. O primeiro a se manifestar elogia a faixa escolhida. O segundo diz que vomita na cara de quem gosta daquela faixa. O terceiro pede calma, gente, cada um tem direito a gostar do que quiser (é trucidado na sequência e se retira choramingando). A partir daí, o tom passa a ser de lamento porque a música era tão boa antes e hoje está tomada pelo mercado e a vulgaridade.

- Humorista faz piada que ofende minoria. Esta reage: ataca o humorista, seu público, o veículo onde ele trabalha. Humorista reclama do politicamente correto. Julgando encerrar a questão de forma distanciada e sábia, um intelectual pondera: "O problema deste tipo de humor não é o conteúdo, e sim o fato de que não tem graça".

- Alguém rico opina sobre transporte público ou trabalho doméstico.

- Alguém de qualquer classe, gênero, raça ou orientação sexual resolve ser irônico(a).

- Blogueiro de grande portal escreve sobre assunto do momento. Nos comentários, o apocalipse da caixa alta e das exclamações. O portal é acusado de não publicar opiniões divergentes. Hitler e Stálin são trazidos ao debate. Um comentarista cola um link do próprio blog. Outro cola uma oração de agradecimento a Santo Expedito pela graça alcançada. Um terceiro cola dicas sobre como emagrecer e manter a autoestima no trabalho e no casamento. O autor do post original comemora o número de cliques e agradece à audiência: "Uns me amam, outros me odeiam, mas ninguém fica indiferente".

- Palpiteiro faz previsões sobre partida de futebol. A partida é decidida numa bola na trave ou pênalti mal marcado. Palpiteiro passa a explicar retroativamente, com opiniões contrárias aos seus palpites anteriores, as razões esportivas, emocionais e estruturais ("faltou planejamento") do resultado. Na próxima partida, a trave e o juiz contradizem as novas explicações.

- Escritor ganha prêmio. Fica feliz (quem não ficaria?) e divulga a notícia como pode (quem não divulgaria?). Na edição seguinte do prêmio, na qual sai derrotado, atribui o resultado ao que seriam resistências à sua postura política independente.

- Bedel de Facebook passa o dia avisando: "Ninguém vai conseguir me calar." O problema é que ninguém parece interessado em calá-lo, muito menos em ouvi-lo. O impasse se resolve quando um problema técnico —um post apagado sem querer, uma pane que tira sua página do ar por algumas horas- dá ao bedel elementos para renovar a imagem que tem de si mesmo.

- Colunista faz (mais) uma lista sobre o que julga serem descobertas originais: a) as pessoas só leem, veem e ouvem o que querem; b) o mundo está perdido; c) é tão fácil olhar tudo de fora com a fleuma dos desencantados. Não são descobertas originais, porém, e a repercussão do texto é nula.


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