Folha de S. Paulo


Nomes do horror

Poucas coisas são mais intensas que um pesadelo. E poucas coisas podem ser mais chatas que ouvir alguém contá-lo.

Isso porque sensações não viram palavras com facilidade: um universo oceânico e abstrato de lembranças, que tem repercussão emocional direta para quem sonhou, só pode ser comunicado por um instrumento, a linguagem, naturalmente mais estreito. Ao acordar, tudo o que temos para evocar nossa angústia e medo são termos genéricos como "angústia" e "medo".

O mesmo pode ocorrer quando tratamos de um pesadelo histórico. Uma reportagem de Philip Gourevitch na revista "New Yorker" mostra como, 20 anos depois da guerra de Ruanda, quando hutus assassinaram 800 mil tutsis em cem dias, numa espiral de ódio fermentada pelo colonialismo —e pelo olhar omisso da ONU—, ainda é difícil chegar a um consenso sobre como chamar o que aconteceu.

O país discute se a melhor palavra para tanto está na língua local, na língua dos colonizadores, se basta precisão verbal ("gutsemba", "massacrar") ou se é preciso a redundância de um neologismo ("gutsembatsemba", "massacrar radicalmente") para descrever os atos de uma tragédia absoluta.

Debates semelhantes acompanham qualquer trauma coletivo. Há grupos judaicos que rejeitam a expressão consagrada "holocausto", com seu caráter sacrificial, de expiação de pecados, em nome da menos ambígua "shoah" ("calamidade", "aniquilação"). Na Turquia, ainda é tabu usar "genocídio" para a matança armênia iniciada em 1915. No Brasil, dá-se algo semelhante na luta pelo reconhecimento do que foi e é praticado contra comunidades indígenas.

De qualquer forma, são batalhas pequenas dentro de uma guerra longa e difícil, de transmissão da memória para que o horror não se repita. Palavras são a primeira arma das vítimas de tentativas de extermínio, às vezes a única, e é preciso chegar a um modo eficiente —que não se resuma a slogans com vocabulário chancelado— para que elas não traiam a natureza do que se viveu.

Ou seja, é preciso saber narrar. Discursos facilmente se banalizam, tornam-se solenes, sentimentais em excesso, causando o efeito contrário do que pretendem. Posso falar quantas vezes quiser em "limpeza étnica", e esta coluna não deixará de ser uma peça retórica para embrulhar peixe. Chegar à sensibilidade do público, causando empatia, desconforto e revolta ativa, o que é objetivo de qualquer militância antiviolência, demanda não apenas reproduzir a verdade dos fatos.

É preciso, também, enxergar a verdade da linguagem. Os relatos mais excruciantes sobre 1994, como os do próprio Gourevitch, encontram algum equilíbrio entre sua matéria extrema e incandescente e o distanciamento informativo que a expressa. Um filme como "Hotel Ruanda", que se alimenta de suspense, sustos e choro, usa a amoralidade narrativa para causar impacto moral na plateia.

Costuma-se dizer que a arte mente para dizer a verdade. O relato memorialístico tem outra natureza, mas sua capacidade de choque (ou encantamento) não dispensa o manejo estético. A falha em transmitir o que sonhamos à noite, que ocorre na grande maioria dos casos, é só uma de nossas formas inofensivas de solidão. É diferente quando o ruído está na voz de quem precisa comunicar o mal coletivo —algo que a grande história, com suas repetições mais trágicas que farsescas, não costuma perdoar.

Claro que, em casos como o de Ruanda —ou dos cristãos mortos por muçulmanos radicais na Nigéria, neste momento—, não depende apenas de quem narra. Por mais pungentes que sejam as vítimas, e elas são na medida do possível, a mensagem não é nada sem um receptor disposto a entendê-la. A botá-la acima de razões de Estado, razões econômicas, boa intenção seletiva e todas as desculpas para uma cumplicidade cujas trevas, igualmente, não são traduzíveis por um nome.

Como isso não é comum, o que ocorreu em 1994 continua sendo apenas um item numa lista atemporal e universal de genocídios, holocaustos, limpezas, extermínios, calamidades, aniquilações, massacres e gutsembatsembas.


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