Folha de S. Paulo


'Amor & Sexo' feminista mostra dificuldade de fazer merchan social

Durante a ditadura, com a televisão sob censura, autores de novela tentavam incluir de maneira disfarçada, em meio a diálogos despretensiosos, comentários de crítica política ou social. Era o que Walter Clark (1936-97), o principal executivo da Globo na primeira metade da década de 70, chamava de "contrabando ideológico", atribuindo a Dias Gomes (1922-99) o papel de "rei" nesta especialidade.

A partir da segunda metade da década de 80, vivendo a redemocratização, os autores de folhetins passaram a incluir abertamente mensagens educativas e de caráter social em suas tramas. O artifício foi batizado de "merchandising social" e tem em Gloria Perez a sua maior referência.

Ainda usada em novelas e séries, a inserção calculada de temas "do bem" hoje alcança outros gêneros na televisão. Um exemplo recente foi o "Na Moral", programa de auditório apresentado por Pedro Bial na Globo entre 2012 e 2014.

A atração consistia em debates semanais sobre temas polêmicos, mas frequentemente fazia prevalecer, seja pela escolha dos convidados, seja por intervenções do apresentador, uma visão progressista. Isso ocorreu, entre outros exemplos, em uma marcante edição dedicada a defender o casamento gay.

Exibido de forma inconstante desde 2009, "Amor & Sexo" é outro programa de auditório que se arrisca a entrar no terreno do merchandising social. Tratando de forma lúdica os dois temas enunciados em seu título, a atração eventualmente tem a oportunidade de dar dicas de caráter educativo.

Na sua volta ao ar, na última semana de janeiro, o programa comandado por Fernanda Lima fez uma experiência radical neste terreno -apresentou uma aula sobre feminismo ao longo de 52 minutos. Todas as brincadeiras, dinâmicas e atividades propostas pela apresentadora tiveram o único propósito de abordar diferentes aspectos envolvidos num tópico maior -os direitos da mulher.

Falou-se de quase tudo um pouco: da condenação da violência masculina aos prazeres da masturbação, da atribuição de rótulos ("piranha", "recatada", "vadia" etc.) aos preconceitos sofridos por mulheres negras, de direitos trabalhistas à falta de representação no Parlamento.

Em ritmo acelerado, como é normal em um programa de auditório, mais de uma dezena de mulheres passou pelo palco dando depoimentos, cantando e defendendo o "empoderamento" feminino. O saldo final desta edição de "Amor & Sexo" foi intensamente discutido nos dias seguintes em blogs feministas, sites e textos no Facebook. Duas visões principais, grosso modo, se opuseram. De um lado, uma defesa do programa por, ainda que de forma superficial, ter colocado o tema em pauta. De outro, a ideia de que essa leveza, justamente, contribui para difundir uma ideia errada da luta feminista.

Concordo que seja motivo de festa a decisão de tratar de um tema tão importante quanto os direitos da mulher em um programa como esse. Mas entendo o desconforto de quem, dedicando-se à causa do feminismo, se chocou com a superficialidade colorida da abordagem.

Diferentemente de uma novela, que pode desdobrar um tema de responsabilidade social ao longo de muitos capítulos, um programa de auditório é limitado pelo tempo e pelo espaço.
No caso específico desta edição de "Amor & Sexo", tive a impressão de estar assistindo a uma edição caprichada de "Telecurso" -talvez aquela dedicada ao antigo primeiro grau.


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