Folha de S. Paulo


Produzida pela Netflix, '3%' sofre na comparação com séries estrangeiras

O primeiro Rock in Rio, em janeiro de 1985, ficou marcado pela distinta qualidade do som ouvido nos shows dos artistas brasileiros e dos estrangeiros, todos usando o mesmo palco principal. Houve muitas reclamações de que os gringos contaram com equipamentos e som de melhor qualidade do que os músicos nativos.

Esta polêmica me voltou à lembrança depois de assistir a dois episódios de "3%", primeira série brasileira produzida pela Netflix, disponível aos assinantes desde a última sexta-feira (25). A qualidade da produção é tão inferior à de séries estrangeiras produzidas pela mesma empresa que o exercício da comparação se torna impossível.

Para não ir muito longe, cito outras duas produções encomendadas pela Netflix que vieram à luz nos últimos 40 dias: "Black Mirror" e "The Crown". Não estou falando de criatividade, originalidade, inteligência ou ousadia. É de dinheiro mesmo que se trata.

Os números não são oficiais, mas circulam sem contestação pela mídia internacional –a Netflix investiu US$ 40 milhões (cerca de R$ 130 milhões) na série futurista britânica e mais de US$ 100 milhões (cerca de R$ 340 milhões) na saga sobre a rainha Elizabeth 2ª. Já "3%", conforme a própria "Ilustrada", custou R$ 10 milhões à empresa.

Na distopia imaginada por Pedro Aguilera e dirigida por Cesar Charlone, o Brasil se tornou uma grande favela onde os jovens, uma vez por ano, têm a chance de se submeter a um processo de seleção para trocarem o Continente pelo Mar Alto, onde vivem os privilegiados. Apenas 3% dos candidatos são aprovados –daí o título.

Aguilera havia feito uma primeira versão da série na raça, há alguns anos, e a jogou no YouTube. É um salto contar agora com recursos da Netflix, uma produtora estabelecida (Boutique Filmes), um diretor conhecido (Charlone dirigiu "O Banheiro do Papa") e atores como Bianca Comparato e João Miguel.

Mas nesta altura do campeonato, em que a oferta ao espectador nunca foi tão grande, é muito difícil competir, para fazer uma analogia com o Rock in Rio, no palco principal com um produto como "3%".

A série exige, muito além da conta, que você imagine o futuro –tanto o pesadelo do Continente quanto o suposto paraíso do Mar Alto. Por falta de recursos, suponho, o ambiente onde ocorre a famigerada seleção é tão simplório quanto a cidade onde vivem os personagens do filme espírita "Nosso Lar" (2010).

Alcançar uma visibilidade maior, como está ocorrendo com "3%", é ótimo, mas tenho a impressão que quem ganha mais com isso é mesmo a Netflix, que agora tem um título brasileiro para exibir em seu cardápio.

A propósito, registro brevemente, e com atraso, que "The Crown" é um dos grandes lançamentos do ano. Para além da recriação impressionante do universo que levou à ascensão ao trono da rainha Elizabeth 2ª, em 1952, a série discute um tema ainda essencial nos dias atuais.

"The Crown" é quase didática ao mostrar que a rainha e sua trupe importam, em primeiro lugar, pela imagem que projetam –não pelo que pensam ou fazem.

O pulo do gato, atribuído na série ao príncipe Philip, teria sido determinar que a coroação, em 1953, fosse televisionada ao vivo. Só a unção e a comunhão foram vetadas na transmissão –Deus ainda era um assunto sagrado demais para a TV naquela época.


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