Folha de S. Paulo


Ao imaginar o futuro,'Black Mirror' também desenha os caminhos da TV

Exibido originalmente em 2011, no Channel 4, da Inglaterra, o episódio de estreia da primeira temporada de "Black Mirror" segue como o mais impactante e poderoso já feito até hoje.

Ambientado em um futuro não muito longínquo, como todos da série, trata do sequestro da princesa Susannah (Lydia Wilson), uma querida integrante da família real britânica. A única exigência para a sua libertação é que o primeiro-ministro Michael Callow (Rory Kinnear) apareça na TV, ao vivo, em rede nacional, fazendo sexo com um porco.

Não vou dar spoilers, pode deixar. Intitulado "Hino Nacional", o episódio condensa as principais qualidades da série criada por Charlie Brooker, cuja terceira temporada acaba de chegar à Netflix.

Cada episódio de "Black Mirror" conta uma história diferente, todas elas com uma mesma ambição: imaginar como o desenvolvimento das tecnologias que dispomos hoje –e o uso que damos a elas– poderá afetar nossas vidas daqui a algum tempo.

Esta habilidade em descrever um futuro quase sempre distópico recorrendo a ferramentas disponíveis no presente (a TV, as redes sociais, os videogames etc.) é uma das qualidades, mas também uma das armadilhas em que a série cai.

Em "Perdedor", primeiro episódio da terceira temporada, por exemplo, "Black Mirror" descreve um mundo em que as pessoas têm mais ou menos direitos de acordo com a avaliação (de 0 a 5) que recebem dos amigos, colegas e estranhos no dia a dia.

Não é necessário esforço para entender e gostar da piada –uma alusão até caricatural à nossa obsessão por "likes" e "curtidas" nas redes sociais.

Mas "Black Mirror" voa mais alto em outros episódios desta nova safra. Com duração de longa-metragem (90 minutos), "Odiados pela Nação" desenvolve uma história fascinante sobre gente que atrai ódio e gente que despeja a bílis nas redes sociais.

Também permite várias leituras a história de "Engenharia Reversa", na qual soldados enxergam os inimigos como baratas gigantes.

A exibição desta terceira temporada pela Netflix envolve, também, uma questão de negócios que diz muito sobre o presente e o futuro da indústria do entretenimento.

A criação de Charlie Brooker foi produzida, desde o início, por uma empresa ligada à holandesa Endemol, uma das maiores produtoras e exportadoras de formatos (o "Big Brother" entre eles).

O Channel 4, na Inglaterra, foi o primeiro canal a exibir a série. E quem assiste aos três episódios da primeira temporada imagina, claramente, o risco e a coragem envolvidos neste gesto (vide a história de "Hino Nacional", descrita acima). Também exibiu a segunda temporada, igualmente com três episódios, em fevereiro de 2013, e o especial de Natal, em dezembro de 2014.

Ao comprar os direitos destes sete programas, a Netflix ajudou a dar visibilidade à série e a torná-la "cult" além das fronteiras britânicas. Percebendo o potencial da série, a empresa americana encomendou 12 novos episódios a Brooker.

Assim, por US $ 40 milhões, a Netflix tornou-se dona desta terceira temporada e de uma próxima, de mais seis episódios, que deve ir ao ar em 2017. E o Channel 4, apoiador da primeira hora, ficou de mãos abanando.

"É decepcionante que a primeira janela de exibição no Reino Unido tenha sido vendida para o maior lance, ignorando o risco que uma emissora pública como o Channel 4 teve ao apoiar a série", lamentou um executivo do canal ao "The Guardian".


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