Folha de S. Paulo


O Brasil católico

No ar há três semanas, "Velho Chico" é uma aposta alta da Globo em seu horário mais importante. Não apenas pela temática, mas pela estética, a novela de Benedito Ruy Barbosa tira o espectador da sua situação de conforto.

O que parece ser um "Romeu e Julieta" do sertão nordestino está ganhando, sob a direção de Luis Fernando Carvalho, um tom grandioso, repleto de nuances pouco convencionais na TV aberta.

Como escrevi em meu blog no UOL esta semana, "Velho Chico" se propõe a quebrar um velho hábito, o de "ouvir" novela. É preciso, de fato, ver para desfrutar da história.

Uma cena chave desta semana, uma passagem de tempo, ocorreu em questão de segundos, sem avisos, nem diálogos. Comentando a respeito da beleza da cena no Twitter, percebi que muitos espectadores não entenderam o que havia acontecido. Porque, apesar de estarem com a televisão ligada, não estavam olhando para a tela.

No retorno ao universo rural, depois de anos de novelas entre o Rio e São Paulo, a Globo também recolocou em cena, em destaque, um personagem que andava em baixa na teledramaturgia: o padre.

Ambientada no Nordeste, nas margens do rio São Francisco, a novela até agora se passou entre o fim dos anos 1960 e o início dos 80.

Romão (Umberto Magnani) não é um "padre de passeata", para usar um termo irônico cunhado por Nelson Rodrigues (1912-1980), mas não é servil. É um homem calmo e bom, que tenta permanecer íntegro e respeitado diante da paróquia submetida ao poder do coronel Afrânio (Rodrigo Santoro).

Há poucos dias, padre Romão se viu entre a cruz e a caldeirinha ao organizar uma procissão. Ele ofereceu a Eulália (Fabíula Nascimento), uma rara proprietária de terras não obediente ao coronel, a honra de indicar duas crianças para viverem São José e Nossa Senhora no evento.

Em seguida, Encarnação (Selma Egrei), mãe do coronel, apareceu em cena para entregar sua contribuição à procissão. Ela tirou da bolsa três maços de notas e disse: "Uma quantia bem gorda dessa vez, que é para o padre cuidar bem dos seus pobres". Romão respondeu: "Não sei como agradecer". E ela: "Agradeça dando o lugar de Nossa Senhora na procissão para minha neta".

Chocado, o padre pegou o dinheiro e o deixou perto da mulher. "Ela é muito nova ainda", tentou. "Ou minha neta sai de Nossa Senhora ou não ponho mais os pés na sua igreja", concluiu Encarnação.

Eulália reapareceu e encontrou o padre transtornado. Apontando o dinheiro, ele disse: "Veio negociar o lugar de Nossa Senhora na minha procissão". E ela, segurando o dinheiro, respondeu: "Pelo bem de nossos pobres, não me importo". Em nome da conciliação –e do dinheiro– o padre se deixou convencer.

"Velho Chico" também tem mostrado, com alguma ênfase, o misticismo e sincretismo do povo –a fé em lendas e práticas religiosas menos conhecidas em centros urbanos.

Esse resgate de um Brasil católico e sincrético ocorre no momento em que a Record, de olho no público evangélico, prepara a estreia de mais duas novelas bíblicas –a segunda temporada de "Os Dez Mandamentos" e "Terra Prometida".

Coincidência ou não, espero que não seja o início de uma guerra religiosa na televisão.


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