Folha de S. Paulo


Orgulho e preconceito

O beijo na boca entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) na penúltima cena do último capítulo de "Amor à Vida", em janeiro de 2014, marcou o fim de uma proibição que durava anos, imposta pela Globo aos seus autores.

Abolido o veto ao beijo gay, Gilberto Braga entendeu, em março de 2015, que seria natural, ao apresentar duas personagens centrais de sua trama, logo mostrá-las expressando afeto.

Assim, no oitavo minuto do primeiro capítulo de "Babilônia", após uma troca de carinhos, Teresa (Fernanda Montenegro) beijou longamente a boca de Estela (Nathalia Timberg).

A repercussão, porém, não foi boa. Enquanto parte do público manifestava choque com a cena, e Ziraldo acusava Fernanda de fazer "apologia do afeto homossexual", a Record anunciava "Os Dez Mandamentos" como uma "novela da família brasileira".

Com a audiência de "Babilônia" em queda, a Globo se viu obrigada a intervir na trama. Teresa e Estela chegaram a se casar, mas nunca mais se tocaram. Um outro personagem da história, programado para ser gay, virou heterossexual.

Ocorreu, então, uma mudança de rumo, com reflexos em toda a teledramaturgia da emissora. Por incrível que pareça, a Globo se deu conta de que precisava explicar melhor ao seu público por que casais homossexuais se beijam, se unem e se casam.

Ainda em "Babilônia" e também em "Sete Vidas", a novela das 18h, exibida no primeiro semestre de 2015, os autores resolveram discutir os preconceitos contra gays. Deixaram a preocupação com o arco dramático de lado e investiram, de forma didática, em ações de responsabilidade social.

Em "Totalmente Demais", atualmente no ar, às 19h30, foi possível ver outro desdobramento desta nova postura da emissora. Gay assumido, Max (Pablo Sanábio) passou os primeiros três meses da novela sem nenhum encontro amoroso.

Esta semana, finalmente, encontrou um rapaz em uma boate. Na rua, propôs dar as mãos a ele. "Relaxa, Ursão, a gente tá no século 21! Não é possível que alguém se incomode com isso!", disse, antes que quatro homens o cercassem e o agredissem.

Acudido por Rafael (Daniel Rocha), Max disse: "Eu me enganei. Fiquei tão acostumado com esse mundinho da moda que acabei achando que o mundo todo era assim. Mas essa noite me fez lembrar que ainda existe muito preconceito e intolerância por aí. Pior, muito ódio!".

Rafael respondeu: "Tô ligado. Mas também existe muito amor". Como se estivesse lendo a cartilha de uma ONG, Max disse: "E por que não aceitam o meu amor, então? Por que não posso andar de mãos dadas que nem todo mundo? Eu não posso ter medo de sair na rua, não é justo! Eu tenho direito de ser feliz também!".

Em outra cena, depois de receber a solidariedade dos amigos, Max fala: "A melhor maneira de derrotar esses ignorantes é continuar sendo quem eu sou. Feliz, apaixonado e de bem com a vida!".

Trata-se de uma inflexão e tanto, do beijo de Felix e Niko à surra em Max, em dois anos. A intolerância aumentou ou a Globo deu um passo maior que as pernas?

Em todo caso, as idas e vindas deste tema mostram como as novelas seguem captando o espírito do tempo e, ao combaterem preconceitos, buscando se manter relevantes.


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