Folha de S. Paulo


Religião e hipocrisia na televisão

Entre os méritos de "Os Dez Mandamentos", encerrada na última segunda-feira (23), o mais nítido e indiscutível foi o registrado pelo Ibope.

No ar de 23 de março a 23 de novembro, a novela da Record estreou com média semanal de 12 pontos no Ibope em São Paulo (cada ponto equivale a 67 mil residências) e foi crescendo, dia a dia, até alcançar uma média de 24 pontos na penúltima semana.

Esse salto de 100% na audiência entre a semana 1 e a semana 34 configura o maior fenômeno do gênero neste ano na televisão.

Uma análise dos números mostra que o crescimento ocorreu de forma consistente, semana a semana, sem maiores saltos, exceto quando a novela passou a exibir as pragas do Egito. Então na faixa dos 16 pontos, "Os Dez Mandamentos" pulou para 19.

É igualmente impressionante e, no caso, inédito, que o ápice de "Os Dez Mandamentos" tenha sido registrado dez dias antes do fim, quando o normal é isso ocorrer nos episódios derradeiros.

Depois do capítulo que mostrou a abertura do Mar Vermelho, o Ibope nunca mais foi o mesmo, descendo de 28 pontos até 17,5 no penúltimo capítulo (e 23,5 no último).

O jornalista Eugênio Bucci propõe uma interpretação original para o sucesso da novela. "O telespectador que se deixou embevecer encontrou seu pacto instantâneo de convivência imaginária com as suas aflições cotidianas –sobretudo as aflições de fundo político", escreveu no "Estadão" nesta semana.

A ser correta a hipótese, enxergo como um mérito da novela ter capturado o espírito do seu tempo –como, em outro momento e contexto, "Vale Tudo" também fez.

Este sucesso fora da curva coroa um projeto tele-evangélico que, mesmo pecando na realização, não é fruto de impulso ou amadorismo. Desde 2010, com "A História de Ester", a Record exibiu anualmente uma minissérie de inspiração bíblica: "Sansão e Dalila'' (2011), "Rei Davi'' (2012), "José do Egito'' (2013), "Milagres de Jesus" (2014-15).

Tendo em mente que a emissora mantém ligações com uma instituição religiosa (a Igreja Universal) e um partido político (o PRB), Bucci observa, alarmado: "Querem o poder e estão quase lá".

Não iria tão longe, mas não posso deixar de observar que, em paralelo à exibição da sua novela, a Record foi hipócrita ao estimular –e emplacar em certos meios– um olhar moralista sobre a Globo.

Repetindo o bordão "uma novela da família brasileira", para se referir a "Os Dez Mandamentos", Marcelo Rezende procurou reforçar a ideia de que as produções da concorrente não seriam desse padrão.

Ora, Rezende apresenta "Cidade Alerta", um programa policial frequentemente ofensivo a qualquer membro da "família brasileira", e a emissora hospeda várias outras atrações, como "A Fazenda", que igualmente não são "adequadas".

A Globo, para sua infelicidade, não pode reclamar dessa ocupação da TV pela religião. Com "Além do Tempo", a emissora mais uma vez está exibindo uma novela que faz proselitismo –no caso, do espiritismo.

Com tanta sutileza quanto Moisés na Record, os anjos Ariel (Michel Melamed) e Cícero (Saulo Arcoverde) e o Mestre (Othon Bastos) têm dado verdadeiras lições aos demais personagens –e ao público.


Endereço da página: