Folha de S. Paulo


O lugar do roteirista

Apesar da proximidade com a produção audiovisual norte-americana, que chega aqui via TV paga, streaming e pirataria, ainda temos muito pouco contato com quem está por trás de seriados importantes, que despertam interesse e discussões.

A passagem por São Paulo, nesta semana, de Chris Brancato, cocriador de "Narcos", foi muito interessante, tanto pelo que ensinou quanto pelo que ajudou a desmistificar.

Em primeiro lugar, Brancato explicitou algo que apenas se imaginava –as decisões de investimento da Netflix estão ligadas ao plano da empresa de se globalizar e atender aos mais variados nichos de mercado. No caso desta série sobre a vida de Pablo Escobar, o alvo, claro, era o público latino-americano e, em particular, o brasileiro.

"Seria importante para eles que os brasileiros gostassem da história", contou em um painel no Telas Fórum, evento sobre o mercado audiovisual, do qual participei como um dos debatedores. Isso não impediu, completou Brancato, fazendo graça, que "Narcos" se tornasse um enorme sucesso da Alemanha.

Decidida a agradar aos assinantes brasileiros e a conquistar novos clientes, a Netflix mirou, desde o início, em José Padilha. Além dos bons números de "Tropa de Elite" (em especial o segundo), o diretor brasileiro ganhou uma espécie de "selo de garantia" depois de dirigir em Hollywood um filme da franquia "Robocop" (2014).

Brancato embarcou no projeto com ele já em movimento. Roteirista experiente ("Hannibal", "Law and Order", "Barrados no Baile", entre outros), defendeu que "Narcos" não fosse falado em inglês, ao menos parcialmente, e gravado fora dos Estados Unidos.

"A vida inteira ouvi que filmes com legenda não funcionam [nos Estados Unidos]. E sempre ouvi que, se não é filmado no país, não dá certo. 'Narcos' mostrou que nada disso é verdade", disse Brancato.

Para quem se interessa pelos meandros da produção audiovisual, em particular pela relação entre diretor e roteirista na indústria, os conflitos ocorridos entre Padilha e Brancato são altamente instrutivos.

O roteirista de "Narcos" queria começar a série já mostrando Pablo Escobar (1949-1993) como um traficante poderoso e perigoso. O diretor preferia começar a história bem do início. "Nós temos os nossos próprios traficantes no Brasil", argumentou Padilha, que impôs a sua visão.

Em resposta a um questionamento que fiz, Brancato revelou outra divergência de fundo com Padilha. O diretor exigiu que "Narcos" tivesse narração em off o tempo todo. "Minha reação: isso é uma muleta, utilizada por autores inseguros", contou Brancato. Para convencê-lo, o cineasta teria dito que esse recurso, utilizado por ele em "Tropa de Elite", é muito comum no Brasil.

Engambelado ou conformado, Brancato se dedicou a estudar o assunto e encontrou em "Os Bons Companheiros" (1990), de Martin Scorsese, um bom paradigma de narração em off onipresente, mas inteligente.

Se perdeu algumas batalhas para Padilha, Brancato mostrou seu prestígio ao ser convidado a supervisionar a criação de "Of Kings and Prophets", um drama bíblico que a rede ABC (TV aberta) vai exibir em breve.

Depois de assistir ao episódio piloto, ele criticou o tom muito "limpo" do programa. Ao custo de US$ 7 milhões (cerca de R$ 25 milhões) este primeiro capítulo foi para o lixo. E a série recomeçou do zero.


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