Folha de S. Paulo


Cartas marcadas

O lançamento, no dia 1º de fevereiro, do seriado "House of Cards" pelo provedor on-line Netflix desenhou o cenário --para muitos, apocalíptico-- do futuro da televisão. A série é codirigida por David Fincher e protagonizada por Kevin Spacey.

Remake de uma produção inglesa, exibida pela BBC na década de 1990, o programa demandou da Netflix investimento de US$ 100 milhões por duas temporadas de 13 episódios cada.

No texto "Como a Netflix está transformando espectadores em fantoches", Andrew Leonard, repórter especializado em tecnologia da "Salon", conta como a empresa chegou à conclusão de que valia a pena fazer uma aposta tão ousada.

Segundo ele, os dados da Netflix sobre os hábitos de consumo de seus clientes (27 milhões nos EUA) indicavam que os fãs da série original da BBC eram também consumidores de filmes dirigidos por Fincher ("A Rede Social", "Clube da Luta", "Zodíaco" etc.) ou estrelados por Spacey ("Beleza Americana"). Logo, concluíram, um remake dirigido por Fincher com Spacey seria garantia de sucesso.

Andrew reproduz uma frase de um diretor da empresa citada na revista "Wired": "Sabemos o que as pessoas veem na Netflix e somos capazes, com um alto grau de certeza, de imaginar o tamanho de uma audiência para um determinado programa baseado nos hábitos do
espectador".

Outra novidade importante de "House of Cards" é que todos os primeiros 13 capítulos já estão disponíveis para aluguel on-line. Ao fazer isso, observa o "New York Times", a empresa "redefine o conceito de 'alerta de spoiler'" e subverte o que o jornal chama de "social TV", ou seja, o hábito cada vez maior de assistir a seriados e discuti-los, a cada episódio exibido, pelas redes sociais.

Oferecer ao espectador exatamente o que ele quer ver. Eis o sonho de muitos envolvidos com o universo da televisão --gente que lida com orçamentos, verba de publicidade e outros negócios.

Argumentos mais "sutis", tais como o de que o público precisa ser surpreendido ou descobrir o que ele não sabe que quer ver, não fazem parte do repertório de quem sonha em transformar a TV num negócio com poucos riscos.

As ferramentas para realizar o sonho do "programa perfeito para o público certo", como sonha a Netflix, vêm sendo aperfeiçoadas e desenvolvidas há décadas.

Em 1970, Homero Icaza Sánchez, dito "O Bruxo", convenceu Boni sobre a necessidade de estudar o comportamento do público durante a exibição das novelas da Globo. Também foi dele a ideia de expor a grupos de potenciais espectadores projetos de programas e sinopses, antes de serem executados.

Antes do uso difundido da internet, diferentes emissoras já ofereciam ao público a oportunidade de palpitar sobre a programação via telefone. O "Você Decide", a partir de 1992, deu ao telespectador a chance de optar por um entre dois ou três finais da história apresentada.

Com a internet, as opções cresceram muito. Mais que isso, na verdade. As tecnologias já disponíveis permitem antever o momento em que, muito mais do que votar na eliminação de um participante de reality show, o espectador determinará, de fato, o que será produzido para ele assistir. É um futuro que assusta.


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