Folha de S. Paulo


Negociação entre Temer e Trump pode ser vítima do vício da 'pós-verdade'

Michel Temer pretende apresentar a Donald Trump um cardápio de propostas de cooperação. Assunto prioritário é a negociação de um acordo, que se arrasta há quinze anos, para autorizar empresas americanas a contratarem serviços de lançamento de satélites na base militar de Alcântara, no Maranhão.

Altamente lucrativo, o negócio geraria recursos necessários para retomar o famigerado programa espacial brasileiro. Além disso, daria ao Brasil espaço na nova configuração republicana de Washington.

Quem negociou o acordo original foi FHC, em 2001. À época, a proposta foi a pique diante da oposição de deputados liderados pelo PT. Temer tem chance de emplacar uma nova versão do texto, haja vista sua maioria parlamentar.

Seja como for, a negociação desse acordo com Trump será objeto de intenso debate nos meios de comunicação e nas redes sociais. Assim como ocorreu no passado, os partidos de oposição vão denunciar a empreitada como "entreguista" e "lesa-pátria".

Essa disputa tem tudo para ser positiva: a discórdia honesta, com base em evidências, é parte essencial da política externa de uma democracia. Ela pode até mesmo contribuir para um acordo mais vantajoso.

No entanto, a opinião pública precisará ligar o alerta coletivo antiempulhação, pois poucas áreas da agenda diplomática brasileira se prestam mais à mentira e à enganação que este acordo de salvaguardas tecnológicas. A era da "pós-verdade", afinal de contas, não é um fenômeno exclusivamente americano.

O festival de atrocidades a respeito de Alcântara já começou. No sábado (21), a revista "Carta Capital" dedicou-se ao tema. Afirmou que o Brasil estaria negociando em "segredo", uma inverdade. Também atribuiu a iniciativa do acordo a José Serra, outra inverdade (a retomada do assunto foi proposta por Dilma, muitos meses antes do impeachment).

O artigo publicado pela revista não parou por aí. Afirmou que o texto do acordo original, negociado por FHC, proibia o Brasil de lançar foguetes próprios da base militar, uma mentira. A revista alertou que aquele acordo também impedia ao Brasil cooperar com terceiros países e direcionar recursos para o desenvolvimentos de satélites brasileiros, duas mentiras. De quebra, técnicos brasileiros estariam proibidos de acessar as instalações da base, outra mentira. Os leitores encontram o texto do acordo original na internet.

Quando o assunto é política externa, a enganação confunde a sociedade, semeando ignorância e abrindo espaço para os interesses espúrios que sobrevivem à base de "boquinhas" financiadas pelo contribuinte.

Agora que o Brasil parte para sua primeira negociação com Trump, quem semeia falsidades num debate tão sensível é quem lesa a pátria.


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