Folha de S. Paulo


O passado do 3º mandato

Os livros de história do futuro dedicarão amplo espaço à era Lula. Seus autores serão forçados a reconciliar os anos de luta sindical na rua aos anos de governo, ao experimento de esquerda e às realidades do poder. A narrativa combinará voluntarismo e pilantragem, brilhantismo e erros colossais: misturas cujas proporções específicas hoje é impossível adivinhar.

Só que agora não é só o futuro que é incerto mas também o passado. Como a história é sempre escrita no presente, o início do terceiro governo Lula reabre as interpretações já existentes a respeito de sua história pessoal e do movimento que o levou até onde está.

Veremos nascer uma nova indústria de livros, artigos e filmes dedicados a atiçar o fascínio do público com as realizações formidáveis e os escândalos espetaculares desta personagem. Uns vão focar o líder popular com raro instinto de sobrevivência. Outros enxergarão o fracasso retumbante de um projeto que expressaria o pior do Brasil profundo. Não faltará sensacionalismo, em que detalhes da vida privada servem como vara de condão para desvendar a psicologia do homem público. Da história como celebração à história como acusação, haverá obras para todos os gostos.

Em meio a tanto ruído, somente um punhado de trabalhos resistirá ao teste do tempo. Essas obras terão uma coisa em comum: serão capazes de integrar documentos oficiais, arquivos pessoais, depoimentos detalhados e nas memórias das personagens principais.

A precondição para que isso aconteça, no entanto, é a existência de fontes vastas e em bom estado de conservação. E isso é agora uma grande incógnita.

O arquivo histórico do PT está espalhado em mais de uma instituição. Os papéis do ex-presidente estão divididos entre um depósito no sindicato dos metalúrgicos e um apartamento em São Bernardo. Não há nada organizado, catalogado, digitalizado ou vinculado a uma base de dados comum.

Quando a Operação Lava Jato questionou os porquês de a OAS custear o armazenamento dos papéis presidenciais, Lula mesmo bradou: "Você sabe o que é sair da Presidência com 11 contêineres de acervo sem ter onde pôr... O que eu faço com isso?".

Todo ex-presidente vive drama similar. José Sarney estatizou seu arquivo no Maranhão. Fernando Collor fechou seus papéis em caráter privado, embora a lei demande abertura à consulta pública. Itamar Franco tem memorial pago pela Universidade de Juiz de Fora e Fernando Henrique Cardoso montou um primoroso acervo com doações privadas.

Lula acaba de fazer sua aposta mais arriscada. Enquanto olha para o futuro, seu grupo deveria ajudá-lo a cuidar do passado.


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