Folha de S. Paulo


Mecânicas do progresso

Dois livros recém-publicados estão fazendo a cabeça dos leitores interessados em política externa.

"Diários da Presidência", de Fernando Henrique Cardoso, é o relato em primeira pessoa dos dois primeiros anos de governo, quando o presidente pôs em marcha sua agenda de reformas. "Flores, Votos e Balas", de Angela Alonso, estuda as estratégias do movimento abolicionista.

Ambas as obras põem em evidência a prática comum a quase todos os reformistas que já tentaram combater o atraso característico que ainda amarra o Brasil aos piores capítulos de seu passado: o uso estratégico da diplomacia e das relações exteriores como instrumento para enfrentar interesses enquistados na sociedade.

Os abolicionistas tinham tudo para fracassar. No início, não contavam com dinheiro, força política ou simpatia popular. Sua causa ameaçava os interesses da principal atividade econômica da época, o agronegócio. Jovens, seus líderes não possuíam uma fração da experiência da gerontocracia no poder.

No entanto, nos 20 anos entre 1868 e 1888, esse grupo mudou a história do país para melhor. Aprendendo de movimentos análogos no exterior, montou uma verdadeira rede transnacional de apoio à causa da abolição. A estratégia externa agregou enorme valor à construção do argumento contra a escravidão. Tivesse fracassado a tentativa, nossa desigualdade seria hoje mais nefasta do que ainda é.

FHC e seu grupo viveram um contexto totalmente distinto. Estavam no poder e representavam boa parte dos interesses herdados de outrora. Como os diários revelam com primor, o presidente tinha horror a boa parte de seus aliados, mas tinha ainda mais horror ao risco. Em sua concepção, ordem era precondição do progresso. Nesse jogo de ganhos marginais, o presidente dos diários mostra-se impaciente com os protocolos da diplomacia, mas faz política externa sem parar. Seu foco é sempre o mesmo: ele usa a atuação internacional do governo para ajudar a destravar as reformas que tenta aprovar em casa.

Assim, o leitor o vê aproximando o Brasil do regime internacional de controle de mísseis com vistas a restabelecer a autoridade civil sobre as forças armadas, sem com isso melindrar os militares dos quais dependia para desocupar refinarias da Petrobras e impedir invasões de terra.

A relação com Clinton nos Estados Unidos ou Menem na Argentina é sempre função do plano real. O espaço para o Conselho de Segurança da ONU ou coalizões com Índia, Rússia e China é ínfimo.

Ambas as leituras de fim de ano são mais uma prova de que diplomacia nada mais é do que política interna por outros meios.

Feliz Natal.


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