Folha de S. Paulo


A força do improviso

É raro um episódio isolado mudar o rumo da história. Mas é isso o que aconteceu há 30 anos, quando José Sarney e Raul Alfonsín se encontraram pela primeira vez.

Graças à abertura de documentos secretos, agora é possível compreender a excepcionalidade do encontro de Foz do Iguaçu, em novembro de 1985. Com gestos inesperados, os presidentes mudaram para sempre as relações internacionais da América do Sul.

Eles atuaram de supetão e no improviso, sem planejamento nem negociações prévias. A ideia original foi de Alfonsín, que a desenvolveu numa conversa informal com assessores abordo do avião presidencial, pouco antes de pousar em Foz.

O princípio era simples. Ao pousar no Brasil, Alfonsín quebraria o protocolo: diria a Sarney ter interesse em visitar a represa de Itaipu, a poucos quilômetros de distância. "Vamos agora."

Itaipu era uma ferida mal cicatrizada. Quando o Brasil decidira fazer ali uma usina gigantesca, a Argentina lançara campanha contrária na ONU e em todos os foros sul-americanos. A obra, argumentam os argentinos, modificaria a vazão das águas do rio Paraná, que bordeia as principais cidades portuárias do país. Mas o Brasil tocou a obra de Itaipu mesmo assim.

Alfonsín queria uma foto em Itaipu ao lado de Sarney. Era o melhor sinal de que o tema estava superado e que não havia espaço para a rivalidade com um vizinho que tinha de ser visto como sócio.

O passo seguinte de Alfonsín foi ainda mais ousado.

Durante a longa jornada em Foz, Alfonsín convidou Sarney a visitar a instalação nuclear de Pilcaniyeu, em Bariloche. Era ali que a ditadura argentina tocara seu programa clandestino de enriquecimento de urânio.

Ao levar Sarney a tiracolo para um lugar tão sensível, Alfonsín também sinalizava uma ideia poderosa ao público argentino: se a Argentina for ter um programa nuclear, terá de ser às claras e sem levantar suspeitas no Brasil.

Havia algo mais.

Se Sarney aceitasse a proposta da visita, seria forçado a reciprocar o convite. Alfonsín queria visitar Aramar, onde os militares brasileiros enriqueciam urânio.

O esquema de visitas presidenciais cruzadas a instalações nucleares criou um gatilho automático, forçando as partes a adotar níveis crescentes de cooperação.

Sarney entrou no jogo com convicção. Quando um colaborador lhe sugeriu que rejeitasse o convite, o presidente brasileiro o ignorou. E quando o chefe do Exército brasileiro deu declarações públicas a favor da construção de uma bomba atômica, em vez de recuar, Sarney pisou no acelerador. Antes distante, a Casa Rosada virou aliada.


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