Folha de S. Paulo


Itamaraty requer desinfetante da transparência

Na semana passada, "O Globo" e a revista "Época" revelaram como um servidor do Itamaraty tentou impedir o livre acesso a telegramas oficiais sobre a suposta ligação entre o ex-presidente Lula e a empreiteira Odebrecht no exterior.

O funcionário sugeria aumentar o grau de sigilo da documentação. Reagindo ao escândalo com celeridade, o Itamaraty disponibilizou os documentos de imediato. Em seguida, porém, o ministério tentou defender o indefensável. Em nota pública, afirmou ter seguido "procedimento administrativo rotineiro, regular e previsto em lei".

Trata-se de um truque. Primeiro, a lei brasileira estabelece que a classificação das informações será reavaliada com vistas à sua desclassificação ou à redução do prazo de sigilo, não a seu aumento.

A reclassificação de sigilo para cima é absolutamente excepcional, embora tenha se transformado em moeda corrente em partes do serviço público.

Segundo, a lei estabelece o direito de acesso à informação de acordo com critérios impessoais, como cabe numa república. Mas o servidor que propôs a reclassificação fugiu ao exame técnico da matéria, prendendo-se de forma discriminatória à trajetória pessoal do requerente.

De acordo com a reportagem de "O Globo", em um memorando, o servidor ressaltou que "o referido jornalista" já produziu "matérias sobre a empresa Odebrecht e um suposto envolvimento do ex-presidente Lula em seus negócios internacionais".

A nota expõe aquilo que o Itamaraty tem de pior: o ranço ainda presente do passado autoritário. Trinta anos de democracia não conseguiram desinfetar o ambiente.

Quando se trata dos documentos que arquiva, o Itamaraty ainda tem marcas de patrimonialismo.

Nos últimos 17 anos, como estudante e historiador profissional, vivi ali numerosos episódios deprimentes. O acesso aos documentos é arbitrário: amigos do rei de plantão têm a vida facilitada, enquanto a patuleia tem a vida dificultada.

Vi gente bem conectada ter acesso a documentos secretos que são negados a terceiros. Vi funcionários negarem a existência de documentos existentes. Vi demandas básicas por igualdade de tratamento ficarem sem resposta. Muito antes de escrever para esta Folha, também ouvi uma ameaça: "Cuidado com o que você escreve porque pode perder o acesso às fontes". Amigos, colegas e alunos tiveram experiências semelhantes.

Essa realidade começou a mudar há três anos, com a Lei de Acesso à Informação. Seu impacto no Itamaraty já é sentido. A geração de pesquisadores da qual faço parte tira o chapéu para aqueles funcionários que trabalham duro para implementá-la.

No entanto, o avanço é lento. A nota divulgada semana passada deu vários passos para trás.

A solução para o problema é simples e poderia ser implementada com uma canetada. Bastaria aprender as lições dos ministérios das relações exteriores de países como França, Reino Unido e Estados Unidos.

Lá, criaram-se comissões independentes para avaliar o trabalho de quem classifica informações. Participam diplomatas, arquivistas, acadêmicos e, às vezes, jornalistas.

O objetivo é um só: impedir que a tendência de todo Estado ao segredo comprometa a qualidade da democracia.

A transparência, afinal, é o melhor desinfetante.


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