Folha de S. Paulo


Nossa tradição

Não é nossa tradição pensar que a violência no Pavão-Pavãozinho e as propinas da Siemens também são temas de política externa, mas o são. O Brasil é signatário de um verdadeiro arsenal de acordos internacionais dedicados a combater nosso horror cotidiano, só que sua tradução em política pública é um fracasso.

Uma nova pesquisa da Secretaria de Reforma do Judiciário, em parceria com Unisinos e ONU, ajuda a explicar o porquê.

"Impacto no sistema processual dos tratados internacionais" revela que não existe um banco de dados unificado sobre os acordos internacionais assinados pelo Brasil: até hoje Ministério da Justiça e Itamaraty têm informações incompletas.

Além disso, não há mecanismo no Congresso Nacional para garantir que deputados e senadores levem esses acordos em conta na hora de legislar.

No Supremo Tribunal Federal e no Supremo Tribunal de Justiça, alguns magistrados até citam normas internacionais das quais o Brasil é signatário como prova de erudição. Na prática, porém, a maioria as ignora ou as trata com desdém.

A Lei da Magistratura Nacional, entulho herdado da ditadura, não prevê responsabilidade para magistrados que ignoram compromissos internacionais e, nos concursos públicos, o direito internacional é assunto menor.

A pesquisa conclui oferecendo dicas práticas de como transformar essa cultura jurídica por meio de novos controles e treinamento especializado. No entanto, qualquer reforma será árdua.
Trata-se do embate entre duas correntes opostas.

A primeira acredita que os acordos internacionais podem funcionar como alavanca para modernizar o Estado e tirar o país da lista de campeões mundiais de brutalidade e injustiça.

A segunda enxerga as normas internacionais com desconfiança, pois são negociadas em foros onde mandam as grandes potências. Segundo essa perspectiva, quem opera o Estado brasileiro precisa de autonomia para equacionar os problemas sem pressão externa, controlando o escopo e o ritmo do avanço.

A segunda corrente é bem mais poderosa do que a primeira. Sua ideologia domina o Judiciário e os escalões mais altos da diplomacia profissional. Conta com adeptos à esquerda e à direita, e tem representantes nos principais partidos políticos. Em momentos de dificuldade, pode apelar para o nacionalismo.

Enfraquecida nos governos FHC e Lula, essa tendência ganhou força nos últimos anos.

Quando um organismo internacional criticou Belo Monte por violar direitos trabalhistas, recebeu uma sarrafada do Planalto. Se o governo tivesse ouvido, quiçá fosse outra a situação dos trabalhadores nas obras dos jogos que se aproximam.

E quando o Itamaraty tentou apoiar resolução na ONU sobre liberdade de imprensa, o Planalto lhe passou um pito federal a pedido da Venezuela. Fosse distinta a atitude, talvez não estivéssemos na liderança hemisférica de mortes de jornalistas no exercício da profissão.

Como este ano não vai ter Copa sem Forças Armadas, passou da hora de repensar a tradição.


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