Folha de S. Paulo


Retaguarda exposta

"Quero ajudar Cristina como for possível", disse Dilma a um de seus embaixadores em 2011, logo após assumir o governo. A Argentina era o principal aliado regional do Brasil, e Cristina representava uma alternativa de esquerda inspirada pelo lulismo. Ciente das dificuldades da colega, Dilma estava disposta a entrar em campo.

Na perspectiva do Planalto, o kirchnerismo merecia apoio depois de tanta façanha. Chegando à Casa Rosada em seguida a uma das maiores crises da história argentina, o casal Kirchner fizera a economia crescer e renegociara os termos da dívida externa. Introduzira políticas redistributivas pela primeira vez. E, no processo, montara uma poderosa estrutura de poder.

O relacionamento de Lula com o kirchnerismo nunca fora fácil. Néstor criara problemas, atuando contra a iniciativa brasileira pela reforma do Conselho de Segurança da ONU e pela criação da Unasul.

Dilma conseguiu melhorar o tom da relação, embora fosse impossível reverter a bateria de atritos comerciais, que apenas pioraram.

Em 2011, o kirchnerismo ganhou força adicional, reelegendo Cristina com 54% dos votos. Alguns sonharam com uma reforma constitucional que permitisse a ela pleitear um terceiro mandato.

De lá para cá, no entanto, o cenário mudou.

Derrotada nas eleições parlamentares de 2013, Cristina ficou sem maioria para reformar a Constituição e tentar mais uma reeleição.

O Banco Central perdeu um quarto de suas reservas, a política de nacionalização de empresas espantou investidores estrangeiros e o preço da soja, motor do kirchnerismo, parou de crescer. Semana passada, sindicalistas antes alinhados com o governo patrocinaram uma greve geral que parou o país.

Nesse ambiente, a tensão social cresce. A opinião pública é cada vez mais inclemente com a sensação de insegurança, os apagões e os escândalos de corrupção.

Para alguns, Cristina poderia até mesmo deixar o governo antes das eleições para tentar a sorte como governadora ou senadora e, assim, contar com foro especial para se defender dos processos na Justiça, que virão.

Cristina também está perdendo amigos pelo mundo. Sua agenda com Chile, Uruguai e Paraguai é negativa, e com a Venezuela, de dependência.

No Brasil, as autoridades econômicas e comerciais enfrentam dificuldades cotidianas para fazer negócio com o governo argentino, e a relação entre as presidentes está longe de ser íntima.

Grupos dentro do PSDB advogam abertamente por uma flexibilização do Mercosul, arrancando o aplauso de partes da indústria e até mesmo de gente vinculada ao PT. Nesse cenário, a Argentina perde.

Cristina ainda tem um ano e meio pela frente, e muita coisa pode mudar. Do ponto de vista brasileiro, porém, o cronograma não podia ser pior.

Enquanto os argentinos estiverem atravessando sua transição política mais importante em mais de uma década, com tudo o que isso traz de incerteza, o próximo governo brasileiro, seja de quem for, estará lidando com seu próprio ajuste.


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