Folha de S. Paulo


Contradições do voto feminino

1935: NASCIAM partidos e realizavam-se eleições. Mas quem votava? O escritor Humberto de Campos registrou um instantâneo de rincões afastados. A história lhe foi contada por Fernando, irmão de Juarez Távora e chefe do partido social-democrata que nas urnas enfrentaria a Liga Eleitoral católica:

"Na cidade de Pereiro, o padre era amigo dos Távora. Tendo recebido ordem do bispo para fazer propaganda da Liga, não dava absolvição a ninguém sem a promessa do confessando de votar na chapa católica. Um dia, ao confessar a mulher de uma praça do destacamento local, perguntou:

"Você é eleitora, minha filha?"

"Sim, sinhô".

"Em quem vai votar?"

A cabocla era despachada:

"Seu vigáro, sou muié de sordado. E seu vigáro sabe que muié de sordado vota onde seu delegado manda!".

A anedota revela o descompasso entre as lutas das sufragistas e a realidades de milhares de brasileiras votantes. Nos livros, aprendemos que essa foi uma época marcada pelo combate de nossas avós por representação política. Luta antiga, pois, desde 1830, escritoras como Nísia Floresta e Narcisa Amália tomaram da pena em favor de reivindicações, hoje, centenárias: mais educação e saúde.

Josefina Álvarez de Azevedo, irmã do poeta, deixou sobre participação na política uma peça de teatro: "O voto feminino". O ato único se passa na casa de um ministro. Os diálogos orbitam em torno das mulheres da família que defendem direitos políticos e igualdade e os homens, que repudiam tais demandas. O final é conciliador: "Que querem que façam os homens? Que vão para a cozinha? Que vão dar pontos em meias?" –pergunta o marido. Resposta da esposa: "Ninguém diz isso. Ninguém quer tirar o lugar dos homens, sem por isso continuarmos nós na humilhante condição em que temos jazido até hoje".

As mudanças trazidas pela República convidaram à fundação de organizações de luta. O Partido Republicano Feminino abriu suas portas a 23 de dezembro de 1910. Na presidência, a feminista baiana Leolinda Daltro. Objetivos? Promover a cooperação para o progresso, combater a exploração relativa ao sexo e o direito ao voto. A discussão sobre o tema vinha se arrastando desde 1880. Leolinda e suas companheiras de militância não perdiam uma única oportunidade de promover o partido.

Em novembro de 1917, levaram às ruas do Rio de Janeiro dezenas de simpatizantes do sufrágio universal. Depois, foi a vez da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Lideradas pela bióloga Bertha Lutz, as sufragistas encontraram no senador Juvenal Lamartine um apoio para animar seu combate. Parceria duradoura, pois Bertha acompanhava o político em seus deslocamentos, aproveitava para fazer discursos, distribuir panfletos e dar entrevistas. Em 1930, começou a tramitar no Senado o projeto que daria o voto às mulheres, mas com a Revolução, as atividades parlamentares foram suspensas. Depois da vitória das forças democráticas, foi nomeado um grupo de juristas encarregado de elaborar o novo código eleitoral. Entre eles estava Bertha, formada em direito. A Revolução Constitucionalista atrasou mais uma vez a aprovação do projeto.

Só em fevereiro de 1932, Getúlio Vargas assinou o tão esperado direito de voto. Mulheres como Bertha Lutz tiveram todas as chances de fazer uma carreira política. Mas, sem educação e saúde, milhares continuaram a votar em "quem alguém manda". Não é à toa que, hoje, temos um recente Partido da Mulher Brasileira, que além de não se identificar com o feminismo, foi fundado pelos homens!


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