Folha de S. Paulo


BC dos EUA caminha no fio da navalha quanto ao aperto monetário

Mark Wilson - jun.2014/AFP
WASHINGTON, DC - JUNE 14: Federal Reserve Board Chairwoman Janet Yellen speaks during a news conference following a meeting of the Federal Open Market Committee June 14, 2017 in Washington, DC. Yellen announced that the Fed raised its benchmark interest rate for the second time since the 2009 global financial crisis. Mark Wilson/Getty Images/AFP == FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
A presidente do banco central dos EUA, Janet Yellen, em discurso em Washington

Uma alta na inflação representa ameaça a uma recuperação sustentada? A resposta provável é não. Mas a proposição já não é tão absurda quanto parecia quando Kevin Warsh —então presidente de uma das unidades regionais do Fed (Federal Reserve), o banco central dos Estados Unidos, e agora candidato o presidente da instituição— declarou que "não creio que devamos encarar o risco de inflação de maneira complacente", em março de 2010. Esse erro de julgamento deveria bastar para descartar sua candidatura.

Ainda assim os tempos mudaram. Isso explica o compromisso do Fed com um aperto monetário gradual. O BCE (Banco Central Europeu) está planejando abandonar suas medidas de estímulo. A questão é determinar se esse ciclo de aperto monetário transcorrerá de modo suave ou acidentado. E a inflação pode ser a diferença.

Até mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes por dia. Os economistas da escola austríaca e os adeptos do padrão ouro vêm alertando sobre uma alta da inflação há anos. Talvez enfim estejam certos. As consequência seriam altamente desordenadoras.

Se a inflação subisse muito rápido, a política monetária teria de passar por aperto significativo. Isso despertaria o medo de uma recessão. Além disso, mesmo que as taxas reais de juros de longo prazo não subissem, o ágio por risco relacionado à inflação, as expectativas futuras quanto aos juros de curto prazo e a incerteza com relação a esses juros cresceriam, elevando substancialmente o rendimento dos títulos convencionais.

Tudo isso solaparia os mercados elevados de ativos e poderia gerar preocupação sobre a sustentabilidade de dívidas. Em uma economia mundial que continua frágil, os resultados poderiam ser horríveis. Poderia até acontecer um retorno da estagflação dos anos 1970, com taxas de inflação muito menores, mas com endividamento muito mais alto.

O foco das atenções é o Fed. Os Estados Unidos continuam a ser a mais importante economia do planeta, e o Fed seu mais importante banco central. Os Estados Unidos também estão bem adiante de outras economias de alta renda em seu retorno às condições econômicas normais, Janet Yellen, a presidente do Fed, expôs as questões com lucidez em discurso recente.

O discurso também demonstrou porque ela é a candidata de mais destaque ao comando do banco central norte-americano. Donald Trump só escolheria um dos outros postulantes se estiver tão determinado a destruir o Fed quanto está em arruinar o Departamento de Estado e outras agências.

O ponto de partida é um enigma: por que a inflação continua tão baixa quando o índice de desemprego já está abaixo daquilo que o Fed (e a maioria dos economistas) consideram como "pleno emprego" (o ponto a partir do qual a inflação deveria começar a se acelerar). A análise do Fed sugere que a frouxidão do mercado de trabalho já não representa fator de baixa, e que uma série de choques temporários que tiveram efeito redutor sobre a inflação também ficou no passado. Assim, na opinião do Fed, a inflação em breve estará se movendo uma vez mais em direção de sua meta.

Por que essa interpretação pode estar errada? Uma possibilidade é que haja uma frouxidão maior do que o índice de desemprego sugere no mercado de trabalho. A razão entre população e integrantes da força de trabalho para a faixa etária dos 25 aos 54 anos de idade continua bem abaixo de picos cíclicos anteriores. A proporção de pessoas que trabalham apenas em tempo parcial também parece um tanto elevada.

Um estudo aprofundado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), em sua mais recente "Perspectiva Econômica Mundial", aponta, em termos mais amplos, que "embora o emprego de tempo parcial involuntário possa ter ajudado a sustentar a participação na força de trabalho e facilitado um engajamento maior com o local de trabalho do que a alternativa, ou seja, o desemprego, ele também parece ter enfraquecido o crescimento dos salários."

No entanto, a maioria dos demais indicadores de pressão no mercado de trabalho já voltou aos níveis vigentes antes da recessão. Assim, embora o crescimento dos salários pareça estar sob controle nos Estados Unidos, isso pode não durar.

Outro fator são as expectativas inflacionárias. Elas influenciam de duas maneiras. No momento, estão bem ancoradas, e a única preocupação é um declínio nas expectativas de mercado quanto à inflação (ou risco inflacionário) daqui a cinco anos. Essas expectativas podem influenciar comportamentos, gerando tanto uma expectativa de baixa inflação quanto uma concretização dessa expectativa. Isso contrabalançaria os sintomas de pressão no mercado de trabalho. Em algum momento, no entanto, esta última poderia fervilhar e criar uma alta rápida de salários, provavelmente em ritmo muito superior ao que seria compatível com uma inflação estabilizada. É algo que já vimos acontecer.

No presente, porém, os riscos não parecem tão grandes. Mas, como sempre, é tudo uma questão de como esses riscos serão administrados. Não devemos duvidar de que uma alta na inflação para além de sua meta criaria perigo significativo. Elevar a meta em uma situação como essa certamente destruiria a confiança no Fed. Mas tentar respeitar a meta, em circunstâncias como as descritas, seria destrutivo e poderia devolver os Estados Unidos à recessão, e seria difícil escapar dela uma segunda vez.

Essa afirmação se provaria especialmente pertinente se os efeitos do estrago nos preços dos ativos fossem fortes, e dívidas ruins em grandes montantes voltassem a emergir. Mas, sob esse cenário, as taxas de juros de curto prazo teriam de ao menos subir substancialmente, o que daria ao Fed mais espaço para um corte do que ele tem agora.

Se um grande salto na inflação seria destrutivo, um aperto prematuro, ou excessivo, também seria. Um aperto excessivo poderia reduzir ainda mais a inflação e desestabilizar ainda mais as expectativas inflacionárias. Ele poderia causar tamanho enfraquecimento na economia que, dado o espaço limitado para cortes de juros sem levá-los ao território das taxas negativas, seria difícil restaurar a demanda. Acima de tudo, depois do imenso choque da Grande Recessão e da desestabilização política que ele causou, um período prolongado de mercados de trabalho fortes seria altamente desejável e mesmo saneador.

O Fed precisa encontrar o ponto de equilíbrio entre apertos monetários rápidos demais e lentos demais. Não há como ter certeza de que a postura atual da instituição esteja errada. Meu melhor palpite é o de que uma alta explosiva da inflação é altamente improvável.

O Fed pode esperar, enquanto testa a capacidade da economia dos Estados Unidos para expandir a oferta. Mas os riscos são reais, dos dois lados. O Fed provavelmente estava certo ao promover um pequeno aperto. Mas precisa cuidar para não ir longe demais. A instituição ganhou muita credibilidade quanto à inflação. Às vezes é preciso gastar aquilo que ganhamos. Vivemos um desses momentos.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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