Folha de S. Paulo


Trump está governando como um republicano tradicional

Apesar de todo o som e fúria, o presidente dos Estados Unidos está governando como um republicano tradicional.

Os primeiros 100 dias da presidência de Donald Trump trouxeram algumas boas notícias e algumas más notícias. Uma das boas notícias é que, embora caoticamente, ele está governando de um modo mais parecido com o de um republicano ortodoxo da era pós-Reagan do que muita gente imaginava. Uma das más notícias é que ele está governando mais como um republicano ortodoxo do que muita gente esperava. Isso agora parece proceder em todas as principais áreas de política pública, tanto internas quanto internacionais. E é claramente verdade quanto à política econômica.

A ideia de reconstruir a infraestrutura dos Estados Unidos desapareceu. O protecionismo comercial parece tépido. Mas a desregulamentação continua a ser um objetivo. O mesmo vale para a reforma tributária, com a habitual combinação entre presentes a algumas categorias, sem cortes que os compensem, e pensamento mágico quanto ao deficit. As políticas de Trump se parecem cada vez mais com as de Reagan, mas começando de um ponto de partida mais desfavorável.

Ao anunciar seu plano para os impostos, a Casa Branca confirmou em um aspecto essencial a experiência que estamos adquirindo até agora quanto ao atual governo. É difícil imaginar outra administração que se dispusesse a anunciar reformas tributárias radicais na forma de um documento de uma página e tão desprovido de detalhes quanto aquele que a equipe de Trump divulgou. Seria risível, se o acontecido não prejudicasse tanto a reputação de competência que os Estados Unidos adquiriram na formulação de políticas. O plano provavelmente chegará morto ao Congresso, em larga medida porque jamais esteve vivo

O plano de uma página divulgado pela Casa Branca na semana passada contém, no entanto, algumas ideias muito parecidas com as anunciadas pelo candidato Trump. Isso torna possível que retornemos à análise publicada pelo Centro de Política Tributária sobre essas propostas, em outubro. Embora tenhamos pouca razão para esperar que um plano como esse seja implementado, a análise que o centro publicou naquele momento nos ajuda a compreender o quanto o ponto de partida escolhido pela administração se distancia do bom senso, na política fiscal.

Comecemos pelos efeitos sobre o deficit fiscal. De acordo com a análise, o plano elevaria o deficit federal (mesmo admitindo que haja melhoras macroeconômicas) em pouco menos de 3% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto estiver em vigor. Mas, de acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), os Estados Unidos já vêm operando com um deficit governamental estrutural equivalente a 4% do PIB, e ele deve crescer para pouco menos de 6% do PIB no começo da década de 2020.

Se os cortes de impostos propostos forem acrescentados, o deficit estrutural geral do governo pode bem superar os 8% do PIB na década de 2020. Isso causaria uma alta explosiva da dívida pública. Não seria possível permitir que isso aconteça, especialmente porque a dívida líquida do governo norte-americano é hoje equivalente a 80% do PIB, ante 45% antes da crise de 2007 e muito menos no momento em que Reagan assumiu a presidência. O deficit estrutural precisa ser reduzido, e não aumentado. Mas as medidas fiscais propostas não são vistas como temporárias, e entrariam em vigor em um momento no qual o desemprego é de apenas 4,5% da força de trabalho. Seria o tipo errado de estímulo, na hora errada.

Os defensores da proposta sugerem, em resposta, que o plano pode cobrir seus custos ao estimular a atividade econômica. Dado o baixo desemprego, isso parece altamente improvável. Mas Steve Mnuchin, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, chegou a sugerir que, em companhia de outras políticas do governo, os cortes de impostos podem elevar a tendência de crescimento dos Estados Unidos a 3% ao ano, ante o número atual de pouco menos de 2%.

Uma alta dessa ordem no crescimento ajudaria. Mas é muito improvável que aconteça, por motivos explicados por Jason Furman, antigo presidente do conselho de assessores econômicos da Casa Branca. Para que ela seja possível, ele argumenta, a reversão no grau de participação na força de trabalho seria menos que suficiente. Também seria necessário um avanço no crescimento da produtividade por hora de trabalho, do ritmo de 1,2% mantido na década passada para 2,8%. Esse ritmo de crescimento de produtividade se provou extremamente raro no passado, por qualquer período longo. Seria uma loucura que as autoridades econômicas simplesmente presumam que isso vá acontecer.

A questão, então, passa a ser se esses grandes cortes de impostos serão compensados de alguma outra maneira. O ajuste nos impostos de fronteira pagos pelas empresas parece carta fora do baralho. Com isso, a única solução seria um imenso corte de gastos. Reduzir os gastos em, digamos, 2,5% do PIB requereria um corte de 12% nos gastos federais. Mas cerca de 90% desses gastos são destinados à defesa, benefícios a veteranos de guerra, previdência social e pagamento de juros sobre a dívida pública. Presumindo que esses itens sejam protegidos, todos os demais gastos do governo federal teriam de ser eliminados. O governo federal simplesmente desapareceria, em muitas áreas.

As propostas tributárias também parecem espantosamente regressivas. De acordo com a análise do Centro de Política Tributária, o 0,1% mais rico na pirâmide de distribuição de renda receberia um corte de impostos de em média 14,2% de sua renda pós-tributos, enquanto os domicílios de classe média teriam corte médio de impostos de 1,8%. Entre as mudanças chocantemente regressivas estariam a revogação do imposto mínimo alternativo, a revogação dos impostos sobre heranças, e imensas reduções nos impostos empresariais, o que inclui as alíquotas de impostos pass-through [impostos empresariais declarados e pagos pelos proprietários de empresas como pessoas físicas]. Àqueles que já têm muito, ainda mais será dado. Essa é a doutrina de Trump. E é também a velha doutrina republicana do efeito cascata, em sua forma mais pura.

Trump conquistou a indicação de seu partido prometendo que seria uma espécie diferente de republicano. Mas não é. A única coisa que conseguiu foi tornar mais evidente a trapaça. Os republicanos pós-Reagan buscavam mobilizar as bases do partido fazendo campanha com base em questões culturais, mas sempre legislaram para o 1% mais rico. Isso pode ser definido como "populismo plutocrático". Trump acrescentou à pauta gastos com a infraestrutura, protecionismo comercial e apoio ao programa de saúde federal Medicare e à previdência social. Mas seus planos são os mesmos: continuar beneficiando o 1%.

O populismo plutocrático é altamente efetivo em termos políticos. Mas funciona causando ainda mais zanga e desespero nas bases. Isso equivale a brincar com fogo, politicamente. A república pode sobreviver a Trump. Mas e quanto ao que virá depois dele?

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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